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Brasil

Domínio de facções desafia Estado, e reação integrada é difícil, dizem especialistas

De acordo com alguns estudiosos do tema, o arsenal é de guerra e o crescimento desses grupos mostra que o país vem perdendo soberania

Redação Jornal de Brasília

02/11/2025 16h53

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Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP

ANDRÉ FLEURY MORAES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

O Brasil fechou os olhos à expansão das facções criminosas nas últimas décadas e, quando abriu, percebeu que elas estão na política e na economia formal, segundo especialistas, com um poder bélico que inclui drones e sistemas antidrones, fuzis e granadas.

A operação contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro na última terça-feira (28), por exemplo, apreendeu modelos belgas, alemães, russos e americanos de fuzis. Integrantes da facção utilizaram também drones para lançar explosivos contra o avanço de policiais.

De acordo com alguns estudiosos do tema, o arsenal é de guerra e o crescimento desses grupos mostra que o país vem perdendo soberania sobre territórios dominados. Outros afirmam que não é possível falar em perda de controle, já que o poder público nunca se fez presente em certas áreas.

Todos concordam que a solução vai muito além do debate sobre segurança pública: exige um projeto de integração nacional difícil de ser implementado, sobretudo às vésperas de ano eleitoral.

“O que precisamos entender é que a existência do Estado foi colocada em xeque nesses locais dominados por facções”, diz Alessandro Visacro, autor de “Guerra Irregular: Terrorismo, Guerrilha e Movimentos de Resistência” (Ed. Contexto, 384 págs.) e membro do DSI (Defesa, Segurança e Inteligência), grupo de estudos da USP (Universidade de São Paulo).

“Se atores armados não estatais com estrutura paramilitar exercem influência sobre povo e território, cobrando taxas e serviços pela imposição do medo, há um processo muito sério de degradação da legitimidade do Estado”, acrescenta.

Na avaliação do coronel reformado da PM de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho, o problema é que facções seguem em expansão.

Pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 19% dos brasileiros convivem com facções criminosas ou milícias em suas vizinhanças, número superior aos 14% verificados em 2024.

“A situação”, diz Vicente, “está para lá de gravíssima”.

“O estado do Rio é o exemplo mais visível, mas no Ceará a situação está assustadora. São facções locais que se associam com Comando Vermelho ou PCC e dominam mesmo comunidades pequenas, no interior da caatinga”, afirma.

Uma delas é a Massa Carcerária, criada por dissidentes do CV no Ceará. Na última sexta-feira (31), em sentença que condenou integrantes do grupo, um juiz da Vara de Organizações Criminosas afirmou que “a instalação dessa facção no território cearense coincidiu com o crescimento exponencial dos índices de violência e criminalidade, incluindo disputas territoriais, chacinas e a consolidação do domínio em comunidades vulneráveis”.

Para Vicente, o país falhou na principal estratégia de combate ao crime organizado, a prevenção, e “nós não temos a menor possibilidade de mexer nisso às vésperas de ano eleitoral”.

“Qualquer coisa que você fale ou deixe de falar, faça ou deixe de fazer tem custo político. A verdade é que todo mundo pisa em ovos.”

Um debate de integração, necessário segundo ele, mostra-se dificultado pelo próprio desenho federativo do país. “Precisamos de programas aos quais prefeituras também se submetam, como nas licitações. Isso cabe ao governo federal”, afirma.

Essa percepção demorou a acontecer, diz o advogado Gustavo Bezerra de Oliveira, especialista em crime organizado, corrupção e terrorismo pela Universidad de Salamanca (Espanha).

“Pegue o exemplo das polícias, cujos bancos de dados até há pouco tempo eram separados. Elas sequer trocavam informações. O que precisamos é sofisticar o combate ao crime organizado, com avaliação de eficácia, e criar redes integradas de informação para que a comunicação seja efetiva”, diz.

Nesse sentido, afirma Oliveira, o projeto de lei que equipara facções criminosas a organizações terroristas é eleitoreiro e está longe de resolver a questão.

“A facção não busca impor terror generalizado para coagir o Estado, a instituição e a sociedade civil. Ela pode fazer isso por consequência. Mas a expansão do crime organizado se dá por dinheiro.”

Avaliação diferente faz o juiz criminal Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo e autor do livro “Terrorismo à Brasileira: a guerra é real; a cegueira, legal” (edição própria, 192 págs.).

“Se facções impõem toque de recolher, dominam comunidades inteiras, extorquem moradores, matam juízes e policiais, isso é terrorismo em qualquer lugar do mundo, independentemente de eventual motivação ideológica. Aqui, não”, afirma.

Lemos tem escolta há 23 anos e diz que o país vive hoje “o preço da negação”.

Na última quinta-feira (30), o presidente Lula (PT) sancionou lei que, entre outras coisas, prevê prisão a quem planeja ataque ou ameaça contra autoridades que combatem o crime organizado.

É uma lei bem-vinda, diz o magistrado, mas não a solução definitiva. “O texto fortalece a proteção de agentes e testemunhas, mas seu impacto tende a ser parcial. Facções não se sustentam apenas na ameaça física”, diz.

Para ele, o Estado não tem hoje métodos efetivos de controle para coibir a infiltração de facções nas instituições e “juízes, promotores, policiais ou políticos cooptados já não são mais autoridades de Estado, mas membros de quadrilha”.

Daí a avaliação do professor da USP Patrick Cacicedo, doutor em criminologia pela mesma instituição, de que o Estado foi conivente com a expansão de facções. “Não há como isso acontecer sem a participação de agentes estatais. Não é um problema de soberania. O Estado tem participação ativa nisso”, afirma.

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