VINICIUS SASSINE
BELÉM, PA (FOLHAPRESS)
No microcosmo criado para a costura de acordos sobre o clima, no Parque da Cidade, em Belém, uma parte das pessoas precisou conviver com o calor excessivo em pavilhões e corredores, com goteiras nas tendas erguidas e com banheiros sem água, tudo de forma momentânea.
A 6 km desse espaço central da COP30, a conferência do clima da ONU, famílias do bairro Guamá vivem as consequências do megaevento de uma forma bem diferente e perenemente.
Moradores de casas em ruas específicas ou passagens, como são chamadas essas vias estreitas, coladas ou mesmo sobrepostas a canais degradados estão há meses na expectativa de demolição de seus imóveis e passaram a conviver com alagamentos ainda mais severos. Uma parte expressiva já se viu obrigada a se mudar para regiões mais distantes.
Dentro de um pacote de obras relacionadas à realização da COP30, o Governo do Pará com recursos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) faz intervenções em canais que perderam vida e função, para alargá-los para fins de macrodrenagem. Para isso, casas precisam ser demolidas para que a água ganhe passagem.
Esse processo não tem sido regular. Quem consegue as indenizações pode seguir a vida, ver os imóveis serem demolidos e se mudar para outras partes do Guamá, ou para regiões ainda mais periféricas de Belém e de seu entorno. Esses deslocamentos são cada vez maiores porque as indenizações não são suficientes para a aquisição de casas próximas, dizem os moradores.
Quem não é contemplado com os depósitos, em razão dos trâmites burocráticos do estado, precisa esperar. As casas remanescem em ruas que, mês a mês, perdem a aparência de ruas, tamanho o amontoado de entulho. A barbearia, o pequeno comércio, a casa do vizinho, tudo foi ao chão, enquanto algumas casas permanecem de pé nesse cenário.
Todo esse processo se agravou nos dois meses que antecederam a COP30, uma vez que o acúmulo de entulho inclusive dentro dos cursos dágua e a intensificação das chuvas levaram a um maior alagamento das casas, um problema crônico, de décadas, que o próprio alargamento e drenagem dos canais tentam resolver.
Nos dias da conferência, máquinas escavadeiras que fazem a demolição das casas desapareceram, o que prolonga a espera e a indefinição de parte das famílias. As ruas estão ainda mais desertas e sem vida. Há famílias que esperam há sete meses por indenização, que permita buscar um novo imóvel e um recomeço.
A reportagem esteve nas passagens Fé em Deus e Vitória no fim de agosto e retornou aos mesmos locais nesta terça-feira (18), a três dias do encerramento da COP30.
Nas duas vias, há demolições de dezenas de casas para alargamento do canal Caraparu, que integra a bacia do Tucunduba. O canal passa no quintal de parte das casas.
No intervalo de quase três meses, mais casas foram demolidas, o que alterou ainda mais o cenário das duas passagens. O ritmo, porém, é lento. Segundo os moradores, houve de 10 a 15 novas demolições.
A reportagem encontrou, nas mesmas casas ainda de pé, as pessoas com quem conversou em agosto.
Elas vivem a angústia da espera, especialmente diante do vazio e sumiço de máquinas durante a COP30, da permanência dos trâmites burocráticos para a liberação das indenizações.
Em nota, o Governo do Pará afirmou que as obras estão em andamento, com serviços de construção de ponte, retificação do canal e instalação de rede de esgoto, em cumprimento ao cronograma. No Caraparu, 220 negociações foram concluídas para as desapropriações, segundo a gestão estadual.
“Há a previsão do encerramento das desapropriações de acordo com o cronograma, porém, em razão das negociações, esses prazos podem ser estendidos”, cita a nota.
O governo paraense disse que a revitalização do canal é necessária para garantir a existência de serviços públicos básicos, como a coleta de lixo por um caminhão e a passagem de uma ambulância. A macrodrenagem da bacia do Tucunduba vai beneficiar 300 mil moradores, segundo a gestão do governador Helder Barbalho (MDB).
O BNDES diz que o contrato está regular e que o Governo do Pará é responsável pela execução das obras.
A casa da esquerda e a casa da direita, onde viviam os vizinhos de Helena de Amorim Gomes, 67, na passagem Fé em Deus, foram demolidas. Ainda se veem as paredes semierguidas e um vaso sanitário.
O imóvel simples de Helena, com a frente pintada de azul, uma entrada única e um pavimento superior de madeira, permanece de pé. Na casa vivem ela, o marido Edmilson Pereira, 72, dois filhos e oito netos.
A situação piorou de agosto até agora, porque os alagamentos se intensificaram, com água “até a canela” dentro de casa. O entulho barra a passagem da água, e o canal está mais cheio por causa das chuvas intensas nesse começo de inverno amazônico.
“Já estamos há cinco ou seis meses nessa espera”, diz Helena. “E parece que eles estão esperando passar a tal da COP30.”
As rachaduras estão maiores, e é preciso remendá-las com cimento. “Quando alaga, a água vai entrando.
Sobe por baixo”, afirma Edmilson. “Deixaram a gente tudo abandonado.”
O casal acredita que uma solução só ocorrerá em 2026. Enquanto o dinheiro não for liberado, éimpossível procurar por um imóvel novo, dizem.
“A boniteza ficou só no centro da cidade. Eles têm de olhar para cá”, afirma Edmilson, em referência a obras de macrodrenagem, paisagismo e saneamento em canais de bairros mais centrais de Belém, também no âmbito da COP30. São os casos da avenida da Doca, que ganhou um parque linear no entorno do canal, e do canal da Tamandaré, também dotado de um parque novo.
Na passagem Vitória, o casal Gabriel de Lima Tavares, 73, e Rosilda da Silva Soares, 74, segue no mesmo lugar, uma casa na curva da rua que ganhou ainda mais aspecto de abandono e destruição. As caixas com objetos de valor pessoal ou material estão empacotadas há meses, numa espera que já dura mais de um semestre.
“A última indenização que a gente soube foi antes da COP30”, diz Gabriel. “Eu acho que vão retomar as máquinas na próxima segunda [depois da conferência].”
O que se discute na conferência da ONU é acompanhado pela TV. “O que eu ouço dizer é que haverá uma melhora para os povos. Vamos ver se melhora mesmo”, afirma Rosilda.
Documentos do projeto do Caraparu mostram que 595 imóveis “deverão ser remanejados para execução da obra”. Os projetos de outros canais também preveem a necessidade de desapropriação e demolição de casas. Os documentos de sete empreendimentos citam a existência de 1.512 “unidades de imóveis conflitantes com a implementação do projeto, que deverão ser remanejadas”.