BRUNA FANTTI
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)
Venerado em letras de funk no Rio de Janeiro, Edgar Alves de Andrade, 55, conhecido como Doca, é considerado por traficantes do CV (Comando Vermelho) uma lenda dentro da facção. Para a polícia, porém, ele é mais um criminoso de alta periculosidade que envelheceu em liberdade.
A percepção sobre Doca varia entre policiais, promotores e pessoas que convivem com ele que ajudaram a traçar o perfil do homem que hoje é apontado como o criminoso mais procurado do estado, responsável por cerca de cem homicídios, e que não tem advogado.
Em 2021, enquanto era investigado pelo homicídio de três crianças que teriam pegado o passarinho de um traficante, Doca negou envolvimento nas mortes e tentou justificar suas ações no tráfico dizendo ser, em suas palavras, um mal necessário. Segundo ele, o dinheiro do crime seria usado para promover benfeitorias nas comunidades onde o Estado, em sua visão, não atuava.
Doca organiza festas comunitárias, distribui alimentos e brinquedos e financia a compra de remédios para moradores dos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio. Seu controle dos territórios é feito com uma mistura de assistencialismo e violência extrema. Sua reputação de torturador domina o imaginário local, e o medo de desrespeitar as regras impostas por ele dita a rotina.
Entre essas regras estão a proibição de relacionamentos com pessoas de comunidades rivais, a obrigatoriedade de contratar serviços de internet indicados pelo tráfico, normas de conduta e o pagamento de taxas por comerciantes. Quem descumpre as ordens é levado ao chamado tribunal do tráfico, realizado na Vacaria.
A Vacaria é uma área isolada às margens da mata da serra da Misericórdia, que interliga os complexos de favelas. O terreno, seco e pedregoso, com poucas vacas e quase nenhum sinal de telefone, foi palco dos confrontos que deixaram 121 mortos em 28 de outubro.
Ser segurança de Doca é símbolo de status pela proximidade com o traficante. Segundo a reportagem apurou, esses jovens fazem um juramento de lealdade, prometendo dar a própria vida pela dele. A veneração é tamanha que muitos imitam seu estilo: houve uma ocasião em que, ao deixar o cabelo crescer, seus seguidores repetiram o gesto. Quando colocou dentes de ouro, vários o copiaram. Todos os seus seguranças se referem a ele como “pai”.
Sua casa é chamada Toca do Urso. Seguranças armados se revezam em um sistema de plantão, com escalas, para proteger o entorno da residência, que tem saída para a mata.
Sua presença também está em grupos de WhatsApp de criminosos de diferentes comunidades, nos quais, dificilmente se manifesta. O número foi identificado pela polícia, e sua foto de perfil é a de Elias Maluco, traficante que matou o jornalista Tim Lopes, em 2002.
Em determinado grupo, um dos criminosos fez uma brincadeira e foi repreendido por Doca. “Vocês são bandidos”, escreveu. Um dos subordinados responde, então, que faz o que Doca mandar.
Em um áudio interceptado, Doca coordena o embalo de entorpecentes.
Natural do agreste paraibano, onde estudou até a quarta série, ele conta a pessoas próximas que ia à escola em pau de arara e migrou para o Rio na adolescência, com seis irmãos. Até os 30 anos, trabalhou como auxiliar de cozinha em restaurantes da zona sul.
Em relato ao psicólogo da prisão disse ter “entrado no crime aos 32 anos por dificuldades financeiras para sustentar a família”, segundo documento obtido pela reportagem. Passou a se reportar a Elias Maluco, atuando em Queimados, na baixada.
Com a prisão de Elias, por ser um traficante mais velho, Doca assumiu a gerência do tráfico na Penha, a cerca de uma hora de Copacabana. Em 2006, segundo a polícia, foi um dos mandantes de ataques que paralisaram a cidade, com bandidos fuzilando delegacias, cabines da PM e prédios públicos. Dezenove pessoas morreram, sete delas queimadas dentro de um ônibus. Escutas mostraram que os ataques foram ordenados pelo CV em resposta ao avanço das milícias.
Dias depois, Doca foi preso na Penha após 11 horas de tiroteio, ao lado de comparsas armados com fuzis.
Foi cercado por eles no momento da prisão. Condenado a 14 anos de prisão, fez até a sexta série no cárcere e passou a trabalhar como pedreiro em obras do presídio, tendo conduta classificada como excelente.
Mesmo assim, segundo investigações, continuou comandando operações do CV de dentro da prisão, negociando armas com o PCC ao lado de um irmão e, em 2009, teria ordenado a invasão do morro dos Macacos, que resultou na queda de um helicóptero da PM, com a morte de três policiais carbonizados.
Após a ação, foi enviado para um presídio federal, onde ficou isolado por cinco anos. De volta ao Rio, sua defesa pediu sua liberdade, com base no cumprimento de dois terços da pena. A Promotoria foi contrária, afirmando que ele era um “tentáculo da facção”, com “métodos violentos de domínio territorial” e “capacidade de arregimentar homens e armas”.
Apesar disso, em 2016, a Vara de Execuções Penais concedeu a liberdade condicional, baseada em laudos que apontavam “arrependimento da vida no crime”, estabilidade familiar e emprego garantido de pedreiro em uma construtora. Doca descumpriu as determinações judiciais e se tornou foragido.
Desde então, o número de anotações criminais saltou de duas para 269, com 26 mandados de prisão por tráfico, organização criminosa, tortura, extorsão, corrupção de menores e ocultação de cadáver.
Na expansão da facção, adotou o apelido Urso em oposição ao peixe, símbolo do TCP (Terceiro Comando Puro) grupo rival que se autointitula evangélico. A escolha reforçava a ideia de superioridade que queria passar: na cadeia alimentar, o peixe é alimento do urso. O animal virou sua marca, presente em grafites, funks e joias usadas por criminosos.
Entre os cerca de cem homicídios atribuídos a ele, destaca-se o assassinato de dois irmãos, na Penha, em 2023, após a casa deles ser usada por policiais durante uma operação. Eles teriam sido capturados, torturados e queimados em represália.
Outras vítimas incluem Janayna Evangelista Paixão, 22, morta junto a dois amigos em 2024 após ser acusada falsamente de ser informante. Além disso, é apontado como mandante do assassinato de três médicos na Barra da Tijuca.
Na megaoperação, seu nome constava entre os alvos. Escapou.
O Disque Denúncia oferece R$ 100 mil por informações que possam ajudar na sua prisão.