O Brasil vive uma nova escalada na judicialização trabalhista. Depois de um período de forte retração no número de ações após a Reforma Trabalhista de 2017, a curva voltou a subir de forma contínua entre 2022 e 2025, impulsionada por mudanças econômicas, alta rotatividade no mercado de trabalho e, sobretudo, pela flexibilização da justiça gratuita a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST). O movimento reverte a queda histórica registrada nos anos seguintes à reforma e recoloca a Justiça do Trabalho no centro do debate jurídico e sindical no país.
Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que 2022 encerrou com cerca de 1,65 milhão de novas ações trabalhistas. Em 2023, o número subiu para aproximadamente 1,9 milhão, segundo o relatório Justiça em Números. No ano passado, 2024, o país ultrapassou a marca de 2,1 milhões de processos protocolados, avanço superior a 14% em relação ao ano anterior e o maior volume registrado desde 2017. Para 2025, projeções de magistrados e especialistas indicam que o Brasil deve atingir aproximadamente 2,3 milhões de ações, consolidando o pico pós-pandemia e superando todos os anos posteriores à vigência da reforma.
A retomada expressiva se explica, em parte, pela mudança de entendimento dos tribunais superiores. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal derrubou dispositivos que obrigavam beneficiários da justiça gratuita a pagar honorários periciais e advocatícios caso perdessem a ação, regra introduzida pela Reforma Trabalhista e que, segundo juristas, teve forte efeito inibidor sobre os trabalhadores. A decisão abriu caminho para um novo ciclo de acesso ao Judiciário, especialmente entre empregados que temiam assumir custos de um processo trabalhista mesmo sem possuir condições financeiras. Em 2024, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou esse cenário ao decidir que a declaração de hipossuficiência econômica (documento no qual o trabalhador afirma não ter recursos para arcar com as despesas do processo) deve ser aceita como suficiente para a concessão da gratuidade, salvo prova em contrário por parte da empresa.

A hipossuficiência, no contexto jurídico, define a situação de vulnerabilidade econômica que impede o trabalhador de custear os gastos de uma ação sem prejuízo do próprio sustento. Ao ser tratada como presunção praticamente automática, segundo advogados, o instituto passou a ser utilizado de forma mais ampla e, em alguns casos, sem uma análise rigorosa da real condição financeira do autor. Esse fenômeno tem sido apontado por especialistas como um dos fatores que ampliaram a litigiosidade, termo usado para definir o aumento do número de disputas judiciais em andamento e o comportamento de recorrer com frequência à Justiça para resolver conflitos trabalhistas.
A aplicação cada vez mais ampla da justiça gratuita tem influência direta no aumento das ações, segundo o advogado trabalhista Edgard Lima Coelho, de 29 anos. Ele acompanha diariamente a movimentação nas varas do trabalho e percebe um avanço expressivo no número de reclamações especialmente entre 2023 e 2025. “Hoje, muitos reclamantes usam a declaração de hipossuficiência como estratégia para entrar com ações sem pagar nada. Ela deveria ter valor relativo, mas na prática está sendo aceita como verdade absoluta”, afirma. Para ele, mesmo trabalhadores com renda compatível acabam sendo beneficiados automaticamente, o que estimula o ajuizamento de ações sem receio de consequências financeiras. “A pessoa junta a declaração e o juiz concede. Com isso, ela pode pedir o que quiser, porque sabe que não terá de arcar com custas nem honorários se perder”, diz.
Edgard lembra que a Reforma Trabalhista havia reduzido drasticamente o número de processos ao determinar que trabalhadores que perdessem a ação poderiam ser responsabilizados por despesas como honorários periciais. Nos últimos anos, contudo, decisões do STF e do TST suavizaram esse entendimento, o que, segundo ele, devolveu segurança ao trabalhador e contribuiu diretamente para que o número de ações voltasse a crescer. O advogado alerta que o aumento tem impacto concreto sobre a estrutura da Justiça. “O crescimento infla a máquina do Judiciário. Quem tem um direito real acaba esperando mais tempo para receber o que lhe é devido. E há quem use a justiça gratuita para buscar indenizações sem fundamento, confiando que não terá de pagar nada mesmo em caso de derrota”, critica. Para ele, o benefício precisa ser analisado com mais rigor, evitando abusos. “Se houver prova de que a pessoa tem condições financeiras, o benefício não pode ser concedido. Não é razoável que alguém que não se enquadra na pobreza litigue com isenção total”, avalia.
A advogada trabalhista Cristiane Dorneles concorda que as mudanças jurisprudenciais influenciaram diretamente o comportamento dos trabalhadores. Após 2017, diz ela, muitos empregados deixaram de acionar a Justiça por receio de arcar com honorários mesmo sendo considerados hipossuficientes. Com a decisão do STF e a consolidação do tema no TST, essa incerteza diminuiu. “Hoje existe mais segurança para ajuizar ações, e isso abriu espaço para pedidos que antes eram evitados, como horas extras, diferenças salariais e danos morais”, afirma. Relatórios recentes do TST citados pela advogada apontam uma “retomada da busca por justiça social” a partir de 2022, com crescimento contínuo da litigiosidade.
O levantamento mais recente da Justiça do Trabalho indica que verbas rescisórias, multa de 40% do FGTS, adicional de insalubridade e indenizações por dano moral continuam no topo da lista de ações mais frequentes. Cristiane destaca ainda que, nos últimos três anos, o TST registrou mais de 361 mil ações envolvendo assédio moral e sexual, com aumento de 14,3% nos casos de assédio sexual. Para ela, isso revela maior conscientização sobre direitos e ambiente de trabalho.
Ela observa que setores com rotinas de trabalho semelhantes (como teleatendimento, varejo e terceirização) tendem a gerar ações padronizadas, mas isso não significa má-fé. E chama atenção para o impacto da rotatividade nos segmentos que mais movimentam a economia do DF e do país. “Demissões frequentes, modelos de contratação flexíveis, falhas no pagamento de verbas rescisórias e erros no registro de jornada estão entre os principais gatilhos que levam trabalhadores ao Judiciário”, explica. A inadimplência das verbas rescisórias, segundo a advogada, continua sendo a porta de entrada da maioria das reclamações.
Cristiane avalia que, apesar do crescimento da demanda, a Justiça do Trabalho ainda consegue julgar volume semelhante ao que recebe, embora o limite operacional esteja próximo. Ferramentas virtuais e audiências telepresenciais, diz ela, ajudaram a dar mais celeridade ao fluxo processual, mas reforça que será necessário investir em equipes, tecnologia e mecanismos pré-processuais para evitar morosidade nos próximos anos. Ela defende que a prevenção de conflitos precisa envolver empresas, fiscalização e Judiciário. “A chave está em evitar que o problema chegue ao processo. Isso protege direitos, reduz custos e torna o ambiente de trabalho mais saudável”, conclui.
Enquanto o país se aproxima novamente da marca de 2,3 milhões de ações anuais, cresce o debate nacional sobre como equilibrar o acesso à Justiça com a necessidade de evitar distorções no uso da justiça gratuita.