“Você tem plano B?” A pergunta dirigida ao repórter, respondida com um acanhado não, é apenas uma das inúmeras inquietações que levaram a dona de casa e “mãetorista” Martha Lu, de 43 anos, a deixar o conforto de seu apartamento em Moema, na zona sul de São Paulo, para se engajar em uma causa solitariamente coletiva.
“Did you know” (Você sabia)?, escreveu em um cartaz com fotos da seca do Sistema Cantareira exibido para turistas estrangeiros na frente do Museu do Futebol, em julho do ano passado. “Ninguém sabia que nosso maior manancial estava perto do colapso. Acharam um crime não terem sido avisados. Alguns choraram comigo. Teve um que me ofereceu lugar para fugir. Enquanto isso, estávamos comemorando a Copa”, contou Martha.
Desde o início declarado da crise, em janeiro de 2014, ela, o marido e a filha de 14 anos já haviam reduzido o consumo de água. “Em março, já queria trocar tudo para economizar mais. Ele dizia que eu estava louca, minha mãe queria me internar.” Mas o “gatilho” que acionou o ativismo aconteceu em maio, quando a Sabesp “aumentou” a capacidade do Cantareira com a inclusão da primeira cota do volume morto, água que fica abaixo dos túneis de captação.
“Aquele gráfico do volume morto é uma piada, não é? Para quem é formado em Administração e fez estatística, como eu, aquilo é um crime. Ali ficou claro que eles não iam falar a verdade. A represa estava quase seca e de repente sobe de 8% para 26%. A partir daquele momento, senti que precisava fazer mais. Peguei meu carro e fui para a represa fotografar”, disse.
A primeira visita à Represa Jaguari, em Bragança Paulista, de onde já se extraía a reserva profunda, comoveu. “Chorei. Falei para a minha tia, que estava comigo: ‘acabou’.” Dali em diante, Martha começou a fazer um giro fotográfico pelos reservatórios em crise, como as represas do Sistema Alto Tietê, na Grande São Paulo, e da Bacia do Rio Paraíba do Sul, no Vale do Paraíba, que abastecem o Rio.
“As pessoas não sabem de onde vem a água. Tem uma desconexão muito grande, uma falta de interesse enorme. Todo mundo deveria ir lá ver a situação com os próprios olhos. Essa experiência me deu uma noção real do problema, que as pessoas não enxergam. A água está acabando, não chovia, e as pessoas estavam vivendo como se tudo estivesse normal.”
Em julho, a cidade de Itu, a 102 quilômetros da capital, entrou em colapso. Lá estava Martha e sua lente para registrar o drama de mais de 150 mil pessoas que faziam filas na praça para encher galões em tanques abastecidos com caminhões-pipa escoltados pela polícia. “Não entendo como deixaram uma cidade inteira sem água sem decretar estado de calamidade pública.”
Mas não bastava só fotografar. Era preciso que os amigos da classe média paulistana vissem. Naquele mesmo mês, criou a página “A Crise da Água em São Paulo” no Facebook e virou figura carimbada em debates, seminários e protestos.
“A ONU está preparada para ajudar 20 milhões de pessoas sem água?”, questionou à então relatora especial para água e saneamento da Organização das Nações Unidas, Catarina de Albuquerque, em um evento na Assembleia Legislativa, em agosto. “A mulher quase enfartou. Gaguejou e disse que não. Mas o que me incomodou foi que ela falou tanto sobre o impacto da crise na questão dos direitos humanos que as pessoas deveriam ser as últimas a terem a água racionada, mas toda repercussão foi para o fato de ela ter culpado o Alckmin pela crise.”
“Não faz sentido saber se a culpa é de São Pedro ou do (Geraldo) Alckmin. O que devemos fazer? É isso o que as pessoas precisam saber”, insistiu Martha em uma mesa-redonda com especialistas em recursos hídricos promovida por uma revista em setembro.
Com as informações colhidas nesse período, após fotografar a mortandade de peixes em Salto, no interior paulista, e o racionamento de água na periferia da capital, a ex-dona de casa deu uma palestra sobre a crise para alunos do conceituado Colégio Bandeirantes, onde a filha estuda. “Foi a maior decepção que eu tive. O colégio não tratou do assunto com os alunos. Ninguém estava economizando água. Os alunos faziam vídeo da brincadeira do balde, desperdiçando”, lamentou.
Fuga. No início deste mês, foi a vez de Martha ocupar o lugar da relatora da ONU em um debate sobre a seca promovido na Assembleia Legislativa pelo PSOL. Em sua apresentação, exibiu algumas fotos e contou as histórias coletadas em quase um ano de trabalho de campo. Esse material vai compor um livro que ela pretende lançar neste ano sobre a crise.
“Ainda não defini o título, mas deve ser na linha do colapso da primeira metrópole da era moderna. Devo ir para a Alemanha finalizá-lo”, contou Martha, revelando o seu plano B. “Aqui não vai dar para viver.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.