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Brasil

Atiradores burlam normas e andam armados longe de clubes de tiro, mostram boletins

A Folha teve acesso a boletins de ocorrência da PRF (Polícia Rodoviária Federal) em que integrantes da categoria foram flagrados portando armamento

FolhaPress

07/08/2022 13h57

Foto: Banco de Imagens

Raquel Lopes
Brasília, DF

Os caçadores, atiradores e colecionadores –conhecidos pela sigla CAC– têm aproveitado os decretos armamentistas publicados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para andarem armados mesmo quando não estão a caminho dos locais de prática de tiro ou caça.

A Folha teve acesso a boletins de ocorrência da PRF (Polícia Rodoviária Federal) em que integrantes da categoria foram flagrados portando armamento em rotas irregulares, mesmo em estados onde não têm residência. Também há caso em que pessoas são flagradas armadas após uso de bebida alcoólica ou com droga.

Até abril, havia 605 mil CACs com registro ativo no Exército e 884 mil armas nas mãos do grupo computadas no Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), gerenciado pela Força. Uma mesma pessoa pode ter mais de um registro em seu nome, o que eleva o número total de certificados da categoria para 1,2 milhão.

Devido às flexibilizações do governo Bolsonaro para facilitar o acesso a armas, os CACs passaram a ter permissão para carregar armamento no trajeto entre a residência e o local de prática, como clubes de tiro, sem qualquer restrição de rota ou horário.

Especialistas alertam que, na prática, essa flexibilização se converteu em uma autorização para o porte informal de armas.
Os boletins acessados pela Folha corroboram essa avaliação.

Em uma abordagem da PRF na BR-163, em Santarém (PA), um CAC estava transportando a arma havia 30 dias. Fora de casa havia um mês, ele viajava a trabalho para Colíder (MT), cidade a mais de mil quilômetros.

A abordagem foi feita em junho. Com o CAC, foram encontradas uma pistola e anfetamina em quantidade para consumo. O homem admitiu não estar indo a nenhum clube de tiro e declarou aos agentes ter residência em Santa Catarina e Rondônia. Ele foi preso e autuado por porte ilegal de armas e droga.

Em outro caso, na BR-116 em Barra do Turvo (SP), a polícia encontrou uma pistola no veículo. O homem argumentou ser CAC e mostrou a documentação para justificar estar com arma. Na abordagem, ele assumiu que a utilizava para sua proteção em deslocamentos de trabalho, e não para a prática de tiro esportivo. Acabou enquadrado em porte ilegal.

Na manhã de 16 de julho, um CAC estava parado em seu veículo em frente a uma loja de soldas, na BR-364 em Ji-Paraná (RO).

De acordo com o boletim, ele exibia sinais de forte nervosismo, com a mão tremendo. Agentes da PRF pediram os documentos do carro, que estavam ao lado de um revólver. O motorista apresentou o certificado de CAC e admitiu não estar indo a um clube de tiro. Ele foi autuado por porte ilegal.

Na BR-153 em Araguaína (TO), um CAC foi abordado para fazer o teste do bafômetro. Quando desceu do carro, os policiais identificaram uma pistola na cintura dele. A documentação que lhe permitia transitar com a arma entre sua casa e o clube de tiro estava vencida. Ele foi encaminhado pela PRF para a delegacia da Polícia Civil por porte ilegal de armamento.

Outra ocorrência se deu em Jataí (GO). Segundo o registro, o atirador se recusou a soprar o bafômetro após assumir que tinha ingerido bebida alcoólica. Na abordagem, filmada por policiais, ele disse ter tomado uma dose na fazenda. O motorista havia sido parado por dirigir em alta velocidade e ultrapassar em local proibido. Ele confirmou estar com arma e munição no carro.

Os agentes registraram apenas uma infração administrativa, justificando orientação da Polícia Civil de Jataí segundo a qual o encaminhamento do envolvido para autoridades policiais só deveria ocorrer se o CAC estivesse “visivelmente embriagado”.

A Folha identificou ainda outros três casos de pessoas armadas que, ao serem paradas pela PRF, afirmaram ser CAC. No entanto, elas não apresentaram nenhum documento de comprovação.

“Existe pressão para que o órgão de controle não atue nessa fiscalização, que já é difícil com a norma atual. Quando amplia o entendimento de trajeto e horário, inviabiliza a fiscalização, ainda mais com clube de tiro funcionando 24 horas”, afirma Michele dos Ramos, gerente de advocacy do instituto Igarapé.

“Com todas as brechas abertas pelo Exército a pedido do governo Bolsonaro, era esperado que todas pessoas com interesse em andar armadas, independentemente do motivo, fossem migrar com força para [o registro do] Exército, contaminando o grupo que de fato se interessa pelo esporte, caça ou coleção”, complementa Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.

De acordo com Langeani, qualquer crime ou ocorrência que gere uma investigação ou denúncia do Ministério Público é motivo suficiente para abertura de processo para cassação da licença para ter arma, seja na Polícia Federal ou no Exército.

Em nota, o Exército disse que a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados atua de forma integrada com os órgãos de segurança pública. “Cada denúncia que provém dos órgãos de segurança pública, inclusive da PRF, é analisada à luz da legislação e existem casos de cancelamento [do registro de CAC] em função de irregularidades.”

Segundo dados obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), somente em 2021 foram 1.426 ocorrências na PRF por porte ilegal de armas contra 980 em 2018, antes do governo Bolsonaro. O aumento foi de 45% em três anos.

A Folha pediu à PRF dados do número de CACs autuados por porte ilegal de armas, mas a corporação disse não possuir filtro para esse tipo de informação consolidada.

Agentes da PRF ouvidos reservadamente dizem que há grande quantidade de casos de CACs identificados transitando com arma para outras finalidades que não a ida ao clube de tiro. Relatam ainda que muitos agentes temem fazer abordagens rígidas em CACs devido à forte pressão de membros do governo em favor dos atiradores, caçadores e colecionadores.

Um dos aliados do Planalto que atua mais diretamente com a PRF é o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente da República. Em setembro do ano passado, ele chegou a promover uma reunião entre o presidente do grupo armamentista Proarmas, Marcos Pollon, e o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, para tratar das abordagens aos CACs.

Na ocasião, Eduardo criticou as ações da PRF e disse que atiradores e caçadores não precisam comprovar os trajetos feitos. Numa publicação nas redes sociais, ele também anunciou que a PRF editaria um manual para orientar os policiais sobre ações envolvendo CACs.

Uma normativa da PRF sobre o tema foi publicada dois dias após o encontro entre Eduardo, Pollon e Vasques.

Questionada, a corporação disse que foram expedidas orientações de como proceder em abordagem a CACs, mas que o material não poderia ser disponibilizado “por conta do dever legal de guardar sigilo sobre informações sensíveis que possam vir a ferir a segurança orgânica da instituição e de seus servidores”.

A Folha teve acesso à nota técnica. Entre os principais pontos, ela estabelece que CACs que sejam flagrados com armas fora do caminho para o local de prática devem responder a uma mera infração administrativa.

A Justiça Federal de São Paulo deu uma liminar, em outubro do ano passado, suspendendo os efeitos desse trecho da nota técnica. A ação popular foi movida pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP). A União recorreu da decisão, mas o pedido foi negado pelo TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região).

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