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Brasil

Adoção de crianças por pais gays dobra no país, mas se concentra em SP e no Sul

Os dados apontam ainda que as famílias formadas por dois pais cresceram mais que as constituídas por duas mães

FolhaPress

14/08/2022 10h16

Foto: Karime Xavier

Isabella Menon
São Paulo, SP

Aos 9 anos, o ator Tiago Pessoa já dizia que seu sonho era se tornar pai. Porém, aos 17, quando se entendeu gay, ele passou a achar que dificilmente conseguiria realizar o seu maior desejo. Sem referências, afirma que sua autoaceitação demorou a acontecer por isso.

Duas décadas depois, ele conheceu o também ator Paulo Tardivo e os dois começaram a conversar sobre paternidade. Casados, eles enfim concretizaram o sonho em 2018 ao adotar Sara, 9, e Davi, 4, que viviam no interior do Ceará.

O número de famílias como a de Paulo, 39, e Tiago, 41, aumentou no Brasil. No ano passado, o total de adoções feitas por casais formados por dois homens foi 93% maior do que o de 2019, segundo dados obtidos pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento por meio do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Apesar disso, casais homossexuais com crianças ainda representam uma minoria. No ano passado, houve 3.800 adoções, sendo 91 por casais com duas mulheres e 131 por casais de dois homens —sendo 82 nos estados de São Paulo e da região Sul.

Os dados apontam ainda que as famílias formadas por dois pais cresceram mais que as constituídas por duas mães —o aumento nesse caso foi de 36% em comparação a 2019.

O processo de adoção dos filhos de Paulo e Tiago aconteceu em São Paulo e foi conduzido de forma tranquila, dizem eles. “Mas, claro, estamos falando de uma bolha”, afirma Tiago, que relata que os preconceitos que eles sofrem se concentram nas redes sociais.

Assim, ele e o marido se preocupam em preparar os pequenos. “Somos pais gays, com crianças nordestinas, filha e filho negros. Dizemos ao mais novo que o cabelo dele é lindo, que a pele dele é linda. Para a Sara, falamos que ela não precisa ficar esperando pelo príncipe encantado e pode vestir o que quiser.”

Hoje, as redes sociais da família, que acumulam centenas de seguidores, são as principais fontes de renda do casal. Por ali, eles compartilham o dia a dia, escrevem sobre paternidade, fazem vídeos engraçados com as crianças e arrecadam com publicidades.

A presença nas redes ajuda a resolver a falta de referências que Paulo sentia na infância. Desde o início, o casal recebe mensagens de usuários que relatam, por exemplo, que passaram a entender a homossexualidade do filho depois de conhecê-los.

A exposição nas redes, porém, vem com um peso. “Queremos uma rede que naturalize a nossa experiência, mas mostre que somos uma família como qualquer outra. Somos falhos, aqui é uma loucura, a casa fica bagunçada, eles ficam de castigo, a gente dá bronca. É normal.”

Para Betho Fers, 40, que trabalha como doula de adoção e mantém o instagram Papaipeando, uma série de fatores contribui para que homossexuais ainda sejam a minoria entre aqueles que adotam crianças no país, como falta de informação e a preconceitos da sociedade. Ele e o marido Erick Silva, 38, adotaram a filha deles em 2018.

“Nós não conhecíamos nenhum casal homoafetivo com filhos. Por muito tempo, fomos o único casal gay do prédio com filhos”, afirma Fers. “As pessoas não conseguem me entender como pai, precisam me encaixar no modelo heteronormativo. E a minha família não é ‘como se fosse’. A minha família é de verdade.”

Sua filha Stephanie, 4, já mudou três vezes de escola porque os pais sentem que as instituições ainda não conseguem entender o modelo familiar deles. “Tem ainda o Dia das Mães, o Dia dos Pais, a professora querendo tomar lugares que não estão disponíveis e dizendo ‘eu sou como se fosse a mamãe dela’.”

Hoje, ele nota um fenômeno diferente, com outros pais de amigos da filha começando a reivindicar mais inclusão. “Não é uma briga solitária. Percebo que a comunidade começa a cobrar da escola, e ver a sociedade querendo interferir no papel social da escola é o modelo dos sonhos.”

Fers define a paternidade como uma escolha que o indivíduo faz de vivenciar o desenvolvimento de alguém que não vai ser para sempre criança, que vai crescer, apresentar demandas. “A Stephanie não vem para lidar e resolver a minha ansiedade ou os meus anseios na paternidade. Ela vem para ter a vida dela e o afeto vai se dar para ligar isso tudo.”

Quando Jonathan, 14, e Valentina, 11, filhos do casal Ângelo, 49, e André Nunes, 46, chegaram em casa, em 2010, a sensação que pairava no ar era “o que a gente faz?”. “Fomos aprendendo com eles também e as coisas foram fluindo”, lembra Ângelo.

O mais velho, por exemplo, então com dois anos de idade, tratava ambos de tio. André explicava: “Não sou seu tio, eu sou o papai”. Até que um dia o garoto chamou o pai, e os dois foram atendê-lo.

Dias depois, o menino chamou novamente, mas resolveu sozinho como diferenciar os pais. Assim, utilizou papai para Ângelo e “papía” para André. Os apelidos pegaram e até hoje é assim que os filhos os chamam, além de ser o nome da conta no Instagram, na qual compartilham a vida da família. “As crianças resolveram isso e outras coisas que a gente tinha de encanação”, diz Ângelo.

Em 2016, os arquitetos Rafael Escrivão e Luciano Rodrigues adotaram Alan, 16, e Davi, 8. O casal transformou a experiência da dupla paternidade no livro “Dois Pais” (ed. Chiado).

Além de descrito nas páginas da obra, o processo sempre foi explicado dentro de casa, de uma forma que o mais novo conseguisse entender aos poucos. “Ele perguntou o nome da mãe biológica dele, que é uma informação que ele não tinha e eu falei. A gente vai repetindo a história dele e cada vez ele pega um pedaço que faz sentido para ele naquele momento”, conta Rodrigues.

Entre os desafios na escola, o Dia das Mães foi um dos primeiros incômodos do casal. De ímpeto, eles pensaram em declinar o evento, mas decidiram perguntar ao mais velho se ele gostaria de participar. E a resposta foi: “Eu quero participar, vai ser legal, vocês vão, né?”.

Eles foram, e no Dia dos Pais a escola mandou um presente: somente um par de meias. Hoje, riem ao lembrar que brincavam que cada um ficaria com um pé.

“A gente se coloca na questão, mas também, ao mesmo tempo, sem criar um conflito para que seja uma questão natural para eles”, diz Escrivão.

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