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Mundo

Quando Wuhan respirou: histórias do antigo epicentro da covid-19

Estudantes na China lembram, em entrevistas pela internet, como, as vésperas do ano novo, os monstros surgiram e depois adormeceram

Agência UniCeub

16/09/2020 16h54

Passengers wear facemasks as they arrive at the Wuhan Wuchang Railway Station in Wuhan, early on April 8, 2020, to leave the city in China’s central Hubei province. – Thousands of Chinese travellers flocked to catch trains leaving coronavirus-ravaged Wuhan early April 8, as authorities lifted a more than two-month ban on outbound travel from the city where the global pandemic first emerged. (Photo by NOEL CELIS / AFP)

Marina Torres
Jornal de Brasília / Agência UniCEUB

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A primavera é feita para ser como uma região selvagem*

23 de janeiro de 2020, Wuhan, Província de Hubei, República Popular da China. De um lado da cidade, passando pela via das areias douradas do rio Yangtze, na região de Hankou, o estudante Well Yang se preparava para celebrar as festividades do ano novo chinês fora de casa. Todos os anos, no feriado, a família do jovem de 21 anos se reúne na casa dos avós para realizar o tradicional jantar de ano novo. Do outro lado, Xinjue Li (Shawn Lee), na época, desacreditou que seria possível colocar um país inteiro em quarentena, mas entrou em choque ao perceber, na semana do ano novo, que a situação ficaria para a história. Nos subúrbios da cidade, Xia Yu deu de ombros quando o lockdown surgiu. Não tinha planos de sair de casa mesmo… Tudo parece que foi ontem. A pior parte  do pesadelo ocorreu até abril. Em maio, novos ares foram respirados. Mas eles jamais esquecerão do que foi aquele ano novo..

No país, mais de um bilhão de pessoas também se preparavam para a festa da primavera. O feriado é o mais comemorado do mundo e se espalha por todo o continente asiático, sendo também uma das datas mais importantes em países como Taiwan, Tailândia e nas Filipinas. Anualmente, mais de 3 bilhões de viagens de ida e volta são registradas no período, com eventos que duram até duas semanas depois, quando ocorre a primeira lua cheia no décimo quinto dia do novo ano e o Festival das Lanternas.

Na véspera do Ano Novo, como manda a tradição, as famílias se reúnem ao lado paterno em ceias regadas à carne e peixe (que deixam sobrar em seus pratos de propósito, como sinal de boa sorte), dividem dumplings e saboreiam bolos de arroz, em sinal de prosperidade. Presentes e envelopes vermelhos contendo dinheiro são trocados entre os familiares, que se vestem em roupas da mesma cor. Nas ruas, os fogos servem para espantar os monstros e trazer boa sorte, ditado pela antiga lenda de Nien — a lenda diz que o monstro feroz se alimenta de seres humanos na véspera de ano novo; para mantê-lo longe, a combinação dos fogos e de versos em papéis vermelhos nas portas são o suficiente.

No entanto, as comemorações do Ano do Rato, que prometiam um ciclo de prosperidade, trabalho e saúde, foram interrompidas devido a uma má notícia de final de ano. Wuhan, conhecida por ser a maior metrópole política e econômica da China Central, com seus 11 milhões de habitantes — quase a mesma quantidade de habitantes que a cidade de São Paulo —, sombreou as luzes das celebrações e virou cenário dos noticiários por uma crise sanitária que até então não preocupava a população: no dia 28 de dezembro, o coronavírus fez a primeira vítima que se teve notícia, e, desde então, 800 pessoas apresentaram os mesmos sintomas, com 25 casos fatais de uma hora para outra. Foi a partir desse momento que a população despertou para o que poderia ser um problema maior do que se poderia imaginar…

O estudante Well Yang lembra que tentou minimizar a ausência física dos familiares na festa de Ano Novo sem deixar de respeitar as instruções de segurança. A comemoração foi diferente, porém compreendida por todos. “Como era muito perigoso, não pudemos sair de casa. A celebração ainda aconteceu com cada um em suas casas. Cada parte da família fez seu jantar de véspera e comemoramos o Ano Novo por uma chamada de vídeo no Wechat (aplicativo de mensagens do mesmo gênero do Whatsapp). Eu acredito que essa foi a única mudança,” comentou, em entrevista por e-mail.

Foi na madrugada do feriado que Shawn Lee percebeu a seriedade do que acontecia. A celebração da data, prevista pela família, foi por água abaixo. “Eu tive aulas até 20 de janeiro. Percebi que a situação era mais séria que eu imaginava depois disso. Desde aquele dia, estive em casa por todo o período, nunca sai até Wuhan sair do lockdown. É realmente um desastre para o mundo inteiro. Todas as atividades da minha família foram canceladas, até o jantar de ano novo. Tivemos todos que ficar em casa e não pudemos fazer praticamente nada”.

Xia Yu também não se viu preocupado com a situação no primeiro momento. Na primeira quinzena de janeiro, o estudante ainda estava ocupado com as últimas provas do período da faculdade, até voltar para sua cidade natal, Wuhan, e dar de cara com o lockdown. Por um lado, os planos dele de ficar com a família não mudaram. “Não pudemos visitar outros familiares e nem sair de casa, mas eu raramente tenho planos de sair em feriados de qualquer maneira,” explicou, em entrevista para o Esquina.

Nesse clima de incertezas, a primeira quarentena do coronavírus no mundo foi decretada e as profecias do ano tiveram que ser mantidas em uma caixa, junto com os enfeites das festividades, por tempo indeterminado. Para além dos enfeites, a população também se viu obrigada a se guardar dentro de suas casas e seguir o lockdown imposto pelo governo para controlar a situação.

Foto: ??? | leipower.lofter.com

O isolamento

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vamos, vamos seguir onde o vento soprar*

Com início em 23 de janeiro, o lockdown na província de Hubei foi o primeiro do país. A partir daquela data, o trânsito dentro e fora da cidade foi impedido e a circulação de pessoas foi limitada; médicos, policiais, entregadores e funcionários do governo foram as únicas funções permitidas a andarem pelas ruas.

Xia Yu mora no subúrbio da cidade com seus pais e dois irmãos. Ele recorda que quando recebeu a notícia, estava em casa, mas sabia exatamente o que fazer. “Estava em casa com meus familiares. Pelas notícias da televisão e pela internet, descobrimos todas as ações de como lidar com o lockdown” ressalta.

A organização do isolamento se deu de formas diferentes pelo país, como conta Xia Yu. Em algumas comunidades, voluntários foram organizados para entregar comida em cada casa regularmente. Em outros lugares, as famílias elegeram um dos membros para sair e comprar o que fosse necessário a cada dois ou três dias. “Além disso, é obrigatório o uso de máscaras quando saimos de casa,  assim como  medidas de desinfecção e medição de temperatura ao entrar em espaços públicos”, acrescenta.

No caso de Wuhan, epicentro original, a quarentena funcionou de maneira mais restritiva. Para supermercados, o método de compras online foi adotado, com funcionários que entregavam a comida para as comunidades. Além deles, os meios de transporte funcionavam apenas para médicos e pacientes. “Primeiramente, fiquei preocupado. Mas depois descobri que descer do prédio para pegar a comida era a única coisa que tínhamos que fazer”, explicou Well Yang.

Para Yang, filho único, ficar isolado em casa apenas na companhia de seus pais foi, primeiramente, muito difícil. “Eu sentia muita vontade de sair de casa e encontrar os meus amigos. Ficar tempo demais em casa me deixa doido,” brinca. Por causa do confinamento, ele teve que deixar de fazer todas as suas atividades preferidas. “Eu sou uma pessoa esportiva. No meu tempo livre, gosto de jogar basquete com meus amigos. Também costumamos ir a karaokês ou sair para comer. Eu gosto de sair para cantar e experimentar boas comidas”, explica.

Porém, dada a seriedade da situação, o jovem tentou ver a situação com um olhar positivo, focado em entender que “poderia fazer tudo que precisa para viver dentro de casa”. “Em casa eu posso me exercitar, usar a internet, cozinhar, jogar videogames, estudar e tantas outras coisas..”, afirma.

As restrições de lazer seguiram iguais para todos. Os hobbies do estudante Shawn Lee, que incluem praticar esportes e viajar, também tiveram que esperar. “Tudo que eu podia fazer era ficar em casa e aproveitar minha própria companhia. Eu não podia fazer outras coisas. No meu tempo livre, eu costumo jogar basquete, futebol e nadar. Eu também amo viajar pelo mundo e viver diferentes realidades em lugares diferentes.”

Em toda a cidade, as universidades optaram por adotar o método de ensino à distância para a continuidade do semestre letivo. Para Shawn, a notícia foi um susto, mas o  método pareceu funcionar bem: “Eu planejava voltar ao campus do feriado em 14 de fevereiro, mas não podia nem sair de casa. Recebi um e-mail da faculdade me avisando que não retornaríamos ao local pelo resto do semestre,” e acrescentou: “Eu estudo matemática aplicada. Na minha perspectiva, o método de aulas online funcionou bem para mim. Eu sou uma pessoa que ama aprender sozinho, e as aulas online me ofereceram bastante tempo para digerir o conteúdo e a repetir as aulas.”

Well Yang também não teve do que reclamar pelo método aplicado na China. Yang é estudante de Recursos Hídricos e Finanças da Universidade de Wuhan, uma das maiores instituições de graduação do país, e conta que, apesar de fazer dois cursos, ficar em casa deu a ele tempo extra para focar no necessário. “Como se pode ver, eu faço dois cursos. Ficar em casa continuamente me ajudou a focar nos meus estudos. Para mim, funciona bem e sem tantas diferenças.”

Por outro lado, nem todos os estudantes pareceram reagir à mudança de método do mesmo jeito. No caso de Xia Yu, também estudante de finanças, a adaptação foi um pouco mais lenta. “Eu estudo Finanças e a minha faculdade optou por usar o método de ensino online. Foi depois de muitos meses que consegui me adaptar ao modelo,” explica.

De portas abertas

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fazer de algum deserto

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o que é feito para ser

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mesmo que o mundo esteja errado

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aprendemos a sorrir como flores*

No dia 8 de abril, Wuhan reabriu suas portas para um novo começo. Depois de 76 dias em casa e apenas três casos em três semanas na província, os moradores receberam, com alívio, a notícia que o lockdown havia acabado. A boa nova chegou depois que a cidade, — que nos primeiros quatro meses da epidemia registrou cerca de 50 mil casos de coronavírus —, no período entre abril e maio, registrou apenas um. Com isso, o bloqueio policial foi-se relaxando, as viagens a outros distritos foram autorizadas e o transporte público voltou a funcionar, mas com restrições.

Xia Yu, que é fã de atividades ao ar livre, como sair com os amigos para fazer trilhas em montanhas, explica que a maior parte de suas atividades de lazer preferidas foram retomadas assim que o lockdown acabou, com pequenas exceções. “Já posso sair e encontrar com meus amigos. São poucas as atividades de entretenimento que ainda não foram reabertas, como cinemas e os cibercafés,” explica ele.

Well Yang conta que o processo de abertura na China também incluiu medidas de controle para evitar uma segunda onda. “Quando o lockdown acabou, pudemos enfim sair de casa mais livremente. Mas ainda tivemos que seguir o código de saúde proposto, que funciona até como senha do Wechat (as regras serviam de senha de acesso para o aplicativo). Usar máscara também é pedido,” explica. Medições de temperatura em ambientes públicos e medidas de desinfecção também continuaram a valer em todo o país.

Quanto aos estudos, no fim do mês de abril, a China, aos poucos, retomou as aulas do Ensino Médio para preparar os alunos para o “Gaokao”, o equivalente do vestibular no Brasil. As escolas de Ensino Fundamental I e as Universidades ainda estavam fechadas, como explica Xia Yu. “Eu ainda fiquei em casa com meus pais. Meus dois irmãos mais novos, do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, voltaram às aulas antes que eu,” conta.

Passado os momentos mais difíceis do isolamento e o processo de reabertura, ficaram ensinamentos nas vidas dos jovens de Wuhan. Yu ressalta que para ele, a lição aprendida é, antes de tudo, prezar para que o menor número de pessoas tenha que ficar cara-a-cara com o incontrolável. “O mais importante não é se tratar, é ter uma prevenção e o isolamento. Se todos fizermos isso, não será bom apenas para nós mesmos e para nossas famílias, mas também muito importante para todas as pessoas. Eu realmente espero que todos possamos passar por isso de uma forma segura.”

Com um novo começo pela frente, Shawn conta com empolgação a mudança de cenário em Wuhan. “A situação está melhorando. Todas as pessoas da cidade fizeram testes e nenhuma mais foi diagnosticada com a doença.” Well Yang também se mostra feliz

em ver como a situação foi controlada no epicentro original do coronavírus. “No momento (em maio, quando a entrevista foi feita), não temos mais pacientes em situação crítica. Wuhan está acordando!”. E já podem sonhar, de olhos abertos, com o ano novo.

*???????? Seguir aonde o vento soprar, por ??? LI JIN WEN

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