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O legado de Mandela: a África do Sul 25 anos depois do Apartheid

25 anos depois de regime de segregação, ficam visíveis na África do Sul tanto as cicatrizes do Apartheid quanto os sinais de mudança

Lucas Neiva

18/07/2019 13h27

Lucas Neiva
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África do Sul, 1970. O país possuía uma parcela de cerca de 75% de negros, mas estes só podiam cultivar uma pequena parcela de terras. O voto para eles era proibido, assim como circular fora de pequenas áreas estabelecidas pelos brancos sem um passe. Praias e bairros nobres eram fechados, com acesso exclusivo para brancos. As universidades e as melhores escolas eram quase exclusivamente brancas, com apenas um pequeno número de negros que conseguiam passar pelas dificuldades econômicas e restrições legais para chegar lá. O país era um dos mais ricos da região na produção de ouro, mas a maioria dos negros viviam em subúrbios, alguns feitos quase inteiramente de tendas de zinco. Sexo ou qualquer relação amorosa entre pessoas de diferentes etnias era proibido. Essa era a realidade da África do Sul durante quase toda a segunda metade do século XX, sob o regime de segregação conhecido como Apartheid.

Os movimentos de combate ao Apartheid foram repelidos com força pelo governo sul-africano, que preferia enfrentar resistências armadas, divisões políticas internas e boicotes internacionais, do que abrir mão do regime. O Apartheid começou em 1948, mas seu fim oficial só aconteceu em 1994, com a vitória de Nelson Mandela, primeiro presidente negro e principal ativista no combate ao regime, nas primeiras eleições multirraciais no país. A segregação deixou marcas profundas na população negra sul-africana, ainda vítima da pobreza.

O Jornal de Brasília conseguiu uma entrevista exclusiva com a advogada aposentada e ex-deputada Sheila Camerer, uma das parlamentares mais importantes na transição política que trouxe o fim do regime. Camerer recorda de ter tido apenas dois colegas negros enquanto cursava a universidade na década de 60, quando começou a compreender o quão absurdo era o Apartheid. “No curso de Direito, tínhamos uma matéria de Direito comparativo da África do Sul com outros países. Mas meu professor tinha uma abordagem totalmente diferente: em suas aulas, ele explicava como funcionava o Apartheid e mostrava o quão errado e ridículo que era aquilo. O regime era fundado em um medo político de que uma maioria negra acabaria com a representação branca na política”.

Sheila afirma que o que derrubou o regime foi principalmente o impacto econômico provocado por ele. “O que trouxe o Apartheid foi a atitude colonial da população branca, que queria deixar clara sua postura dominante. O que derrubou foi a sua total inviabilidade econômica. A segregação se tornou anti-produtiva, não fazia sentido”. “O medo do imperialismo soviético também servia como justificativa para o regime, principalmente com a presença soviética na Angola e no Moçambique. Mas de repente, o monstro havia desaparecido, não havia mais União Soviética ou imperialismo soviético.”

A segunda metade da década de 1980 foi um período de reformas intensas na política sul-africana, quando já estava claro que a manutenção do Apartheid estava insustentável. “No fim dos anos 80 já não havia mais uma única voz se pronunciando a favor do regime no parlamento”, disse a ex parlamentar. Em 17 de abril de 1994, o regime finalmente chegava ao fim.

25 anos depois: da água ao vinho

O fim do Apartheid trouxe mudanças profundas em todos os aspectos da sociedade sul-africana. Os negros conquistaram, depois de décadas de opressão, todos os direitos que são hoje considerados básicos em qualquer país desenvolvido no mundo: podiam votar, escolher onde morar, andar onde quisessem, escolher onde estudar, e ter todas as mesmas liberdades antes exclusivas para um cidadão branco. Mas Nelson Mandela e os governantes seguintes sabiam que apenas acabar com o regime não seria suficiente para promover a igualdade racial no país.

As décadas que sucederam o Apartheid foram marcadas por ações afirmativas intensas para integrar os negros na sociedade, e os responsáveis pela manutenção do regime nas últimas décadas tiveram que responder pelas ações. A população negra, apesar de livre da opressão, ainda vivia na pobreza, e a desigualdade econômica ainda era uma mancha naquela sociedade. “Antes a luta era contra o racismo. Agora é contra a pobreza”, disse Sheila

Músicos negros expõem seu trabalho em uma praça em Waterfront, área nobre da Cidade do Cabo. Foto: Lucas Neiva/Jornal de Brasília

A desigualdade econômica ainda não foi totalmente superada, mas as diferenças da África do Sul de hoje em comparação com a de 25 anos atrás são visíveis. Negros e brancos dividem os mesmos espaços, circulam pelos mesmos ambientes. Em Waterfront, área nobre de lazer da Cidade do Cabo, negros e brancos são vistos circulando pelas ruas e dividindo os mesmos postos de trabalho. Grupos musicais multiétnicos e artistas de todas as etnias expõem seus trabalhos nas praças, ruas e calçadas. Os mesmos restaurantes são frequentados por brancos e negros.

A realidade da população negra mudou em diversos setores graças às ações afirmativas. Camerer recorda: “Quando eu estudava Direito, em 1962 e 1963, havia apenas duas mulheres e dois negros na minha turma. Negros eram permitidos na universidade, mesmo com restrições. Hoje, na Universidade da Cidade do Cabo, por exemplo, os programas de integração possibilitaram uma maioria negra entre os estudantes. 80% deles são negros”.

A política sul-africana também mudou muito com a entrada dos negros na política. Desde 1994, todos os presidentes da África do Sul são negros. A maior parte das cadeiras parlamentares são formadas por negros, e a presença de mulheres também cresceu consideravelmente. 

No entanto, as feridas do Apartheid ainda não cicatrizaram por completo na África do Sul. Brancos ainda ocupam a maior parte das terras agrícolas, bairros nobres ainda tem uma maioria branca nas cidades. Ao sair do aeroporto da Cidade do Cabo, é possível ver enormes comunidades negras vivendo em barracos de zinco e sem qualquer infraestrutura. Mas os esforços para que o país se torne uma sociedade igualitária, sem distinção entre raças, são nítidos para quem olha para a África do Sul de hoje e compara com a de três décadas atrás.

Mandela Day

“Nunca, nunca e jamais novamente esta linda terra vai passar pela experiência da opressão de um pelo outro”, frase de Nelson Mandela em praça em sua homenagem na Cidade do Cabo.

 

 

Desde novembro de 2009, a data de hoje (18 de julho) é instituída nas Nações Unidas como Dia Internacional Nelson Mandela, em comemoração ao seu aniversário. Nelson Mandela foi a principal liderança negra na luta contra o Apartheid, internacionalmente reconhecido e homenageado pelos seus serviços pela humanidade e pela sua contribuição em prol da democracia, tendo recebido o prêmio Nobel da Paz em 1993. Esta reportagem foi escrita em sua homenagem.

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