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Mesmo com centrista Biden, polarização deve seguir como nota dominante nos EUA

Trata-se de um extremismo motivado por um ressentimento contra o “sistema”, de uma nostalgia racista e xenófoba de uma América “pura”

Redação Jornal de Brasília

07/11/2020 14h43

Foto: Reprodução

Vinícius Torres Freire
São Paulo-SP

A era dos extremos nos Estados Unidos está longe de terminar, dizem observadores da vida americana.
Correntes profundas na sociedade, difíceis de explicar por categorias sociais, econômicas e políticas mais tradicionais, tendem a fazer com que o confronto polarizado permaneça uma nota dominante no país e emperre o governo de Joe Biden.

Trata-se de um extremismo motivado por um ressentimento contra o “sistema”, de uma nostalgia racista e xenófoba de uma América “pura”. Também de uma revolta contra “elites” e minorias; contra a ameaça do mundo exterior (globalização, “comunistas”, cosmopolitas).

Floresce devido ao desaparecimento de um terreno comum de diálogo e da empatia -o outro é inimigo. É uma revolta irracional, no sentido de que muitas vezes não é orientada pelo cálculo do interesse, pessoal ou de classe, de perdas e ganhos, e também pela recusa do diálogo baseado em evidências.

Enfim, o caráter cada vez mais indiferenciado das políticas dos partidos que se sucedem no poder provoca revolta com a política. “Não importa se a vitória é de Biden ou de [Donald] Trump. A mesma dinâmica vai continuar em operação, a do jogo de soma zero”, afirma o sociólogo americano Richard Sennett, estudioso do declínio da vida pública e das transformações do trabalho, ora professor na London School of Economics.

Esse “jogo de soma zero” seria a noção de que o próprio progresso pessoal depende do rebaixamento de um outro grupo, ideia comum em quase um terço da sociedade, a base mais fiel do eleitorado de Trump. Essa atitude não estaria associada a uma revolta de classe, negligenciada ou decadente em termos socioeconômicos, ou não apenas. Seria a nostalgia de uma América pura, branca, traída por membros da elite e pelo “sistema”, até do serviço público preocupado com a ideia de bem comum, observa Sennett.

Como tal atitude social e política não redunda em melhorias reais ou no aumento da auto-estima, o ressentimento se agrava. Uma derrota de Trump tenderia a levar essa massa de adeptos ainda mais para a extrema direita racista e animada por teorias da conspiração, do gênero QAnon, e incentivaria milícias.
De resto, há uma identificação forte com a pessoa de Trump, opinião também do embaixador Rubens Ricupero. “Para pelo menos metade do país, não importa se Trump é um fracasso na pandemia, na redução do déficit comercial, no emprego industrial. A identificação é com o líder, não há juízo de realizações. Nisso, temos uma situação parecida com a do Brasil de Jair Bolsonaro. A identificação da massa com o líder lhe dá certa imunidade”, diz Ricupero.

Para Matias Spektor, professor de relações internacionais na FGV, a explicação de fenômenos como a polarização e Trump pode estar em três correntes de fundo, diz: 1) a “elasticidade da realidade”: desde o início deste século, governos mentem ou distorcem sistematicamente fatos essenciais; 2) as polarizações fazem com que as pessoas se tornem mais e mais impermeáveis a evidências empíricas, ainda mais se apresentadas pelo “outro lado” do espectro político; 3) a reemergência do racismo aberto, baseada na ideia de que grupos majoritários estão sob ataque de minorias (negros, imigrantes).

Spektor observa que desigualdade de renda, a oposição entre a vida em áreas rurais e cidades pequenas e metrópoles bem-sucedidas, zonas industriais decadentes versus grandes cidades integradas na economia global, brancos versus não brancos contariam apenas parte da história, se tanto.

As divisões estão dentro também desses grupos: o rico britânico favorecido pela integração econômica mundial que vota pelo brexit e o latino adepto de Trump. Para Sennett, o extremismo atravessa classes e se deve a uma perda do sentido de propósito da vida, que nota entre trabalhadores brancos há décadas.
“Tanto na eleição de 2016 como na de 2020, o que fica evidente é o sentimento de alienação dos brancos remediados ou mais pobres, para quem o governo não faz diferença na vida. Têm certa razão, pois a diferença prática de políticas tem sido pequena, quando existe ou funcionam” diz Ricupero.

O diplomata diz que Trump sabe explorar o sentimento de insegurança ou revolta dos evangélicos em relação a mudanças de comportamento moral e deu voz e coragem ao racismo velado. “Explorou ainda mais esses medos durante os protestos do Black Lives Matter, com as derrubadas de estátuas e ideias de acabar com a polícia”, afirma Ricupero.

A indisposição para o debate realista de problemas em um terreno comum de diálogo é um drama, diz Spektor. Como sair disso? Difícil, pois teria havido perda de legitimidade da classe política (tida como corrupta), uma incapacidade de empatia (o adversário se torna inimigo) e um aumento da demanda de soluções mais radicais, fora do consenso partidário.

“Houve um colapso da autoridade legítima, uma ausência de lideranças críveis e capazes de dizer algo que faça sentido, que se sobreponha a divisões sociais, que esteja acima delas”, diz Spektor. Uma coalizão reformista pode atenuar diferenças, com melhorias socioeconômicas? Em parte. É preciso também restaurar a “política da realidade” dos fatos.

Mas mesmo com políticas menos iníquas, as pessoas podem continuar a se sentir não representadas e por vezes votar contra seus próprios interesses (como americanos pobres contra sistema de saúde público ou programas sociais que beneficiam o “gueto” e minorias).

O sucesso de Trump, sua votação expressiva, tende a reforçar a radicalização e minar a política centrista, diz Sennett. Como o extremismo mostrou ter grande valor no mercado eleitoral, os republicanos devem fazer uma oposição “terra arrasada”, diz Spektor, que não acredita em renovação de lideranças no partido.

Para Spektor, uma mudança importante conduzida pelos democratas exigiria uma liderança do tamanho e do carisma de Franklin Roosevelt, presidente de 1933 a 1945, e de um programa de reforma social e econômica amplo, que dependeu de um momento muito particular, o dos EUA entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra.

A opção restante seria um movimento de massa, como sugere a ala esquerda dos democratas, o que, no entanto, teria apoio minoritário da população e a oposição do establishment do partido, ligado à finança.
“Biden cometeu um erro estratégico. Acreditou que Trump era um ponto fora da curva. 2020 mostrou que não é, o que ficou reforçado pelo grande comparecimento às urnas dos dois lados”, diz Ricupero.

Como um presidente sem maioria decisiva, Biden teria muita dificuldade de promover reforma social que atenuasse esse sentimento de exclusão. “Ele sempre foi cauteloso e não tem a estatura dos presidentes reformistas americanos, nem a de um Lyndon Johnson [1963-1969], que levou adiante os direitos civis e reformas da seguridade social. Ele mesmo diz que será um presidente de transição.”

A vitória de Biden reforçaria a tendência centrista do comando dos democratas, de iniciativas limitadas tendo em vista a manutenção do poder no curto prazo, na eleição de 2022, um tanto fisiológicas, sem remediar fissuras profundas.

Combinaria o uso da máquina da Casa Branca para reforçar presença no Congresso a alguns programas que vendeu na campanha, como combate à crise climática e obras de infraestrutura “verde”, alguma reforma da polícia e alguma ênfase em políticas de ação afirmativa.
Uma provável maioria republicana dificultaria ainda mais as reformas.

As informações são da Folhapress

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