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Desarmamento nuclear é nobre, mas algo limitado pela política, diz diretor da ONU para energia atômica

A afirmação é do diplomata argentino Rafael Grossi, que há sete meses lidera a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica)

Redação Jornal de Brasília

03/08/2020 14h06

Igor Gielow
São Paulo, SP

O desarmamento nuclear, 75 anos depois da explosão da bomba de Hiroshima em 6 de agosto de 1945, é um objetivo nobre, mas limitado pela realidade política.

A afirmação é do diplomata argentino Rafael Grossi, que há sete meses lidera a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).

Em conversa virtual com a reportagem, na quinta (30), ele afirmou que sua consideração “não descobre nada de novo, mas era verdadeira”.

Grossi, 59, é otimista.

Apesar de as grandes potências, EUA e Rússia, manterem seus arsenais e estarem às turras sobre o acordo remanescente sobre controle de armas atômicas, o Novo Start, ele vê no TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear) um instrumento que barrou a bomba pelo mundo.

De fato, hoje há oito potências nucleares oficiais (EUA, Rússia, China, França, Reino Unido, Índia, Paquistão e Coreia do Norte) e uma não-oficial (Israel), ante dezenas projetadas no começo da corrida armamentista.

Nesta entrevista, ele discorre sobre como o veto pacifista às armas nucleares se confundiu com à ojeriza à energia atômica. “Há muita carga ideológica na discussão.”

Ele a louva como parte do mix energético do futuro, apesar de acidentes como o de Tchernóbil (na Ucrânia soviética em 1986) e Fukushima (Japão, 2011).

Um dos papéis da AIEA é justamente a promoção do uso pacífico da energia nuclear.

Para o embaixador, as críticas sobre a segurança dessa matriz energética não se sustentam ante a importância potencial dela como fonte de eletricidade com emissão quase nula de carbono.

Grossi também fala sobre o Brasil, pedindo empenho do país e da Argentina para incrementar o importante Abacc (Acordo Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), que completa 30 anos em 2021 e evitou a construção da bomba por ambos os lados.

Procurado, o Itamaraty não informou quanto investiu no acordo este ano. Na previsão do Orçamento, era estimado um aporte de R$ 394 mil para o trabalho de cerca de 50 inspetores do lado brasileiro.

Grossi toca num ponto sensível: cobra a adesão do Brasil a protocolos adicionais do TNP, que preveem regime mais duro de inspeções, rejeitados pelo Itamaraty como ingerência na soberania energética do país e por expor segredos das centrífugas de enriquecimento de urânio.

PERGUNTA – Este ano marca o 50° aniversário do TNP e o 75° dos bombardeios atômicos. Ao mesmo tempo, os desafios na área nuclear são crescentes. Como o sr. avalia isso?

RAFAEL GROSSI – Eu creio que estamos numa situação muito anômala. Mas o TNP é um tratado que tem um histórico positivo, pois logrou conter o número de países possuidores de armas nucleares numa dimensão relativamente manejável.

Já é um clichê citar aquela frase do presidente John Fitzgerald Kennedy em 1963, segundo a qual haveria 25 potências nucleares [nos anos 1970]. Não era ilógico pensar assim naquele momento. Essa ordem permitiu manter uma certa estabilidade.

O seu teor é perfeito? Não. Há limitações sobre a existência de países que podem ou não ter armas. Eu, como diplomata, como meus colegas do Brasil, crescemos numa época em que se dizia que o tratado era discriminatório.

O regime de não proliferação, para todos os efeitos, é universal, com as exceções conhecidas. O tema pendente é, claro, o desarmamento. Ele é um objetivo nobre, que todos compartilham, mas está limitado por situações objetivas que têm a ver com o poder internacional.

P – Não proliferação, desarmamento e controle de armas andam juntos. Há o Irã, a Coreia do Norte, as conversas fracassadas sobre o Novo Start, as novas armas russas, a nova doutrina nuclear americana. O sr. acha que os riscos de um confronto atômico são maiores hoje?

RG – Há essa tentação de colocar um termômetro, como o famoso Relógio do Juízo Final [do Boletim dos Cientistas Atômicos, dos EUA]. Acho que há coisas mais objetivas: a crise da não proliferação e o controle de armas, que não é desarmamento.

Controle é a gestão das armas nucleares. Isso vem do começo dos anos 1970, a partir de uma série de acordos de limitação. Como você sabe, num dado momento, no pico da Guerra Fria, se chegara a cifras estratosféricas, absurdas, de mais de 30 mil ogivas para cada potência.

Houve uma consciência de que seria possível lidar com isso de outra forma, e daí vieram os acordos.

O último dos acordos ainda vigente é o Novo Start. Creio que o que está acontecendo é uma transição. Não sabemos muito bem de que forma, mas há uma tendência de que é preciso tratar de novos atores.

P – Como a China.

RG – Sim, não apenas a Rússia e os EUA. E novas tecnologias, como você disse, como as armas hipersônicas. Para alguns, isso merece um novo esquema normativo. Não tanto baseado na aproximação quantitativa, mas mais flexível.

Essa não é minha área de competência, é uma análise. Minha competência é sobre a outra, a dos desafios recorrentes da proliferação.

P – Sim, como…

RG – No caso da Coreia do Norte, lamentavelmente não falamos mais de proliferação. O arsenal nuclear deles não é reconhecido, mas é um fato. As negociações atualmente são bilaterais [entre EUA e Pyongyang], antes eram seis partes negociando. Após um avanço bastante promissor, agora está num platô.

O caso do Irã é mais complexo. É um caso de evitar o desenvolvimento de armas nucleares. É uma saga. Está difícil. A situação do Irã é de não cumprimento. Isso é tolerado pelas partes, pois consideram que a existência do acordo em si é um ativo.

Mas o tema do Irã não se esgota no acordo. Eles têm uma série de compromissos com a agência em termos de salvaguardas tradicionais, e o que há é negativa de acesso por parte do Irã aos inspetores da AIEA.

P – A questão militar e tragédias como as de Tchernóbil e Fukushima coíbem o progresso do uso pacífico da energia nuclear?

RG – A resposta clara é não. O uso da energia nuclear no mundo tem crescido. A média global é de 12%, 13%. Em muitos países, em particular os mais industrializados, estão em 20% ou mais. No caso da França, quase a 80%.

A Alemanha é outra questão, eles estão descomissionando, mas ainda está em 14%, 15%. Os Estados Unidos estão em 20%.

E há um crescimento exponencial na China, na Índia, na Rússia e há países novos no jogo, como a Turquia e os Emirados Árabes Unidos, um país do Golfo [rico em petróleo], algo impensável há alguns anos.

Vietnã, Bangladesh, os países do Leste Europeu, muito interessados em reduzir sua dependência estratégica de outros países [a Rússia, no caso].

O Brasil continua, Angra vai continuar, Argentina já tem três reatores. Falaram no canto do cisne, mas isso não se manifestou.

Tchernóbil e Fukushima levaram a um debate. Eu não sou um lobista nuclear, mas daqueles que reconhecem as coisas do ponto de vista científico. Na minha modesta opinião, há muita carga ideológica na discussão nuclear.

Se misturam sentimentos que têm a ver com as armas nucleares. Nos movimentos na Europa, é indistinguível: são pacifistas contrários às armas que também são contra a energia nuclear.

P – Acaba sendo uma grande amálgama.

RG – Há um elemento muito interessante que é o da mudança climática. A energia nuclear tem uma baixíssima emissão, quase nula, de carbono. Além disso, ela gera um terço da energia limpa no mundo. Abordar a mudança climática rechaçando a energia nuclear é, francamente, incompreensível.

P – Os países mais desenvolvidos que acabam sediando os movimentos mais contrários.

RG – É uma boa observação, mas eu a matizaria um pouco. O Reino Unido, que é um caso bem interessante. Lá, o governo é entusiasta da energia nuclear. Certamente, em sociedades abertas e democráticas o dissenso é parte do debate.

P – A AIEA prevê qual será o mix do futuro?

RG – É difícil. Não há um modelo único para todos. A boa matriz para o Brasil é muito diferente daquela da Argentina, porque vocês têm uma hidroeletricidade maravilhosa. Países como Japão e França, precisam muito de nuclear e renováveis. Algumas análises falam que será algo entre 15% e 20%.

As matrizes limpas são todas importantes, mas no caso da renovável, há uma intrínseca intermitência, seja na eólica ou na solar. A energia nuclear é constante, um complemento muito interessante.

P – Falando de Brasil e Argentina, há dúvidas sobre a cooperação entre a Abacc [acordo entre os dois países sobre a área nuclear] e a AIEA. Há sobreposições, menos coordenação como no caso da agência com a Euratom [o órgão europeu do setor].

RG – A Abacc foi um passo histórico que ambas as sociedades não souberam valorizar. Basta olhar as dificuldades econômicas dos nossos países para ver que uma corrida armamentista teria sido uma obscenidade, uma loucura.

Mas não era impossível.

A Abacc é um êxito incrível. Isso é uma coisa, mas a cooperação técnica com a AIEA é algo discutido.

A cooperação com a Euratom não foi fácil no começo. Porque se trata de determinar até que ponto os sistemas regionais de contabilidade e controle de materiais nucleares podem substituir a presença da AIEA.

No caso da Euratom, a situação avançou mais por uma questão de alocação de recursos. Posso dizer que é preciso lutar para que, para ter uma Abacc plenamente madura, nossos dois países terão de ter coragem de dar um passo a mais.

Ambos os países podem dar um salto qualitativo.

P – Esse salto incluiria a adesão do Brasil aos Protocolos Adicionais?

RG – Eu acredito que sim. Eu cresci num meio em que se dizia que, se Argentina assinasse o TNP, isso iria condenar o setor nuclear argentino. O setor se salvou com o TNP.

Ambição tecnológica tem de estar acompanhada por uma coerente posição em matéria normativa. Se é estado da arte na tecnologia, tem de ser na norma. E não ter alta tecnologia e uma normativa abaixo do padrão.

Rafael Mariano Grossi, 59

Nascido em 1961 em Buenos Aires, Grossi se graduou ciência política pela Pontifícia Universidade Católica da Argentina em 1983, e virou diplomata dois anos depois. É especialista em desarmamento e não proliferação nuclear. Serviu como embaixador junto à Otan (a aliança militar ocidental), na Bélgica e em entidades internacionais em Viena, entre outros postos. Em dezembro de 2019, assumiu a Agência Internacional de Energia Atômica, órgão ligado à ONU. Casado, tem oito filhos.

As informações são da FolhaPress

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