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Crianças morrem congeladas enquanto os ataques provocam o maior êxodo da guerra na Síria

“Eu só quero que os meus filhos não fiquem com frio. Não quero perdê-los para o frio. Não quero nada, somente uma casa com janelas que impeça a entrada do frio…”

Redação Jornal de Brasília

27/02/2020 10h14

A criança não estava se mexendo. O seu corpo esquentara e depois esfriara. O pai a levou correndo para o hospital, a pé, porque não encontrou um carro, mas já era tarde demais. Aos 18 meses, Iman Leila havia morrido congelada.

No esqueleto de concreto semi acabado, que se tornara sua casa desde que haviam fugido do noroeste da Síria, Leila e sua família passaram três semanas suportando temperaturas que raramente subiam acima dos 20º.

“Eu sonho que estou quente”, contou o pai de Iman, Ahmad Yassin Leila, dias mais tarde pelo celular. “

Eu só quero que os meus filhos não fiquem com frio. Não quero perdê-los para o frio. Não quero nada, somente uma casa com janelas que impeça a entrada do frio e do vento.”

O levante da Síria começou com uma súbita chama de esperança há quase nove anos, exatamente. Agora, em meio a uma das piores emergências humanitárias da guerra, alguns dos que reivindicaram liberdade e dignidade em 2011 querem somente proteger-se do frio.

O vencedor efetivo da guerra civil da Síria, o presidente Bashar Al Assad, está mais perto do que nunca de retomar o último território rebelde da Síria, a província de Idlib, no noroeste do país, um marco histórico que definirá a sua vitória, ainda que o sofrimento do seu povo se torne mais profundo.

Nos últimos três meses, as suas forças, respaldadas por bombardeios aéreos russos, intensificaram o seu ataque na província, empurrando cerca de um milhão de pessoas na direção da fronteira com a Turquia. Ali, muitos deles vivem em barracas ou dormem ao relento no frio congelante. Iman Leila era uma das nove crianças que morreram de frio nas últimas semanas.

O êxodo é o maior de uma guerra que deslocou 13 milhões de pessoas e ceifou centenas de milhares de vidas, um dos maiores, inclusive, da história recente, depois da fuga dos muçulmanos rohingya de Myanmar, em 2017. Com cerca de três milhões de pessoas presas entre a fronteira turca fechada ao norte, e as bombas e as granadas do sul e do leste martelando incessantemente, a crise poderá agravar-se muito mais enquanto o governo luta para retomar toda a Síria.

Guerra Civil na Síria. Foto: AFP

“Estas pessoas tentam tomar as decisões mais difíceis de sua vida em condições que não podem controlar”, afirmou Max Baldwin, o diretor do programa do Norte da Síria para a Mercy Corp. “O grau de intensidade, o fato de que está o exército turco, a linha de frente se movimente lá, e eles mirem constantemente os hospitais – está gerando um grau de medo e de incerteza que se tornou um enorme desafio para todos. E a situação poderá se agravar”.

Os sírios em fuga buscam a segurança dos acampamentos, nas áreas rurais perto da fronteira turca ou em aldeias que podem ser bombardeadas a qualquer momento. Os que têm mais sorte se abrigam em edifícios alugados ou abandonados, muitos dos quais não têm portas nem janelas. Dezenas de milhares se amontoam nas calçadas ou em baixo das oliveiras, sob plásticos grossos, cobertores amarrados aos galhos das árvores, ou mesmo nada.

Os que podem, compram combustível para os aquecedores, quando conseguem algum. Os que não conseguem, enrolam os filhos em plásticos e enchem qualquer recipiente com água quente para esquentar as camas das crianças à noite. Quando a lenha acaba, queimam as roupas e os calçados.

Alguns fugiram carregando pedaços de suas casas – molduras de portas e janelas – na esperança de improvisar abrigos temporários ou reconstruir uma casa, algum dia. Agora, estas também acabaram no fogo. Uma família que tentou manter acesa uma pequena fogueira no interior da barraca, acabaram incendiando-a enquanto dormia, matando duas crianças.

“Há muita gente morrendo”, disse Leila. “Ninguém se importa”.

Assim como centenas de outras, a família Leila já fugiu de outro lugar e acabou em Idlib, como último refúgio. Há nove anos, Leila participou de protestos pacíficos contra o brutal autoritarismo de Assad, que se transformaram em um levante armado e então em uma guerra. Quando as forças de Assad recapturaram o bairro natal de Leila em Damasco, Ghouta Leste, há dois anos, a família aceitou a oferta do governador de uma passagem livre para Idlib, em vez de encarar a punição.

Mais de um milhão de civis de todas as partes da Síria fizeram o mesmo, e muitos já se mudaram diversas vezes. Desse modo, eles dobraram a população de Idlib, transformando-a em uma mescla de dissidentes transplantados com as famílias e uma variedade de grupos de jihadistas e de rebeldes que exploraram o caos para assumir o controle político.

Estes grupos – dominados pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham ligado à Al-Qaeda – ofereceram uma justificativa ao governo sírio pelo massacre em nome do contra-terrorismo.

Como grande parte da região se encontra sob o fogo, as organizações de ajuda não conseguem chegar até os civis, ou levam horas para levar suprimentos aos campos a poucos quilômetros de distância, por causa das estradas totalmente congestionadas. Os trabalhadores da ajuda, voluntários e empreiteiras que fornecem água, cobertores e alimentos estão fugindo de suas próprias casas, enquanto tentam ajudar outros, e deixando a ajuda humanitária mergulhada no caos.

Os grupos de ajuda há muito tempo esgotaram os estoques de barracas e não têm recursos para comprar outras. “As pessoas não têm exigências em matéria de abrigo”, disse Fuad Sayed Issa, fundador da Violet, uma ONG de ajuda síria sediada do outro lado da fronteira turca. “Eles só querem ter um lugar para ficar. Telefonam pedindo barracas, mas não temos nenhuma para dar”.

Impossibilitados de chegar aos países que outrora enviavam ajuda militar aos rebeldes, eles pedem um socorro que ninguém está oferecendo. “Estamos sozinhos, é isso”, disse Issa. “Este é o fim”. Até o início da ofensiva do governo, na primavera passada, Idlib manteve uma frágil estabilidade durante o cessar-fogo intermediado pela Rússia, que apoia Assad, e a Turquia, que apoiava as forças da oposição.

A Turquia protestou contra as violações do acordo e realizou conversações com a Rússia, em vão. A Rússia prometeu restabelecer o cessar-fogo, embora os seus aviões bombardeassem hospitais civis. A Turquia lançou uma modesta contra-ofensiva, embora poucos acreditem que isto acabará com o massacre.

Os Estados Unidos, que têm 500 soldados no sul e leste da Síria, descartaram o envolvimento de suas tropas no noroeste do país. O governo Trump apoiou a Turquia, expressando seu apoio ao seu contra-ataque e à proposta de criação de uma zona de segurança turca para os civis desabrigados na fronteira.

“A Turquia sozinha não tem condições de resolver a situação de 3 milhões de refugiados que atravessam sua fronteira”, disse James Jeffrey, o diplomata do mais alto escalão dos EUA que supervisiona as questões da Síria, em uma entrevista pela televisão turca em Istambul, este mês. “Ela tem todo o direito de garantir que isto não aconteça, e nós estamos aqui para ver de que maneira poderemos ajudar os turcos a garantir este direito”.

Do lado turco da fronteira, os refugiados sírios observam angustiados seus celulares repletos de apelos dos familiares em Idlib, perguntando aonde irão. “Eles não querem partir e ser humilhados – ficar na rua, não ter como alimentar os filhos, vê-los tremer de frio”, disse Abdulhamid Sallat, um ativista turco que escapou para Reyhanli, a pequena aldeia na fronteira turca, em 2014. A sua família permanece na aldeia natal síria, Binnish.

“Não estou dormindo”, disse seu primo, Turki Sallat, um serralheiro de Reyhanli cujos pais e irmãos também estão em Binnish. “Não posso fazer nada”, De alguns dos campos, os refugiados podem ver a Turquia, verde e ordenada atrás da cerca da fronteira. Do lado turco do posto de controle de Reyhanli, as oliveiras crescem em fileiras ordenadas. Ninguém dorme debaixo delas, só um cão vadio.

Mas a Turquia já abriga mais de 3 milhões de refugiados sírios, e se recusa a aceitar mais. O que não tira as esperanças de Khadija Mohsen Shaker. Ela e um dos seus quatro filhos atravessaram há vários dias para Reyhanli em busca de cuidados médicos – ele está sendo tratado por problemas renais.

Mas logo terão de voltar para a sua barraca em Idlib, onde seus pais e dois outros filhos estão morando. “Meu desejo é poder viver na Síria como as pessoas vivem aqui”, ela disse. “Lá, o medo está em toda parte. Estamos cercados pelo medo”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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