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Conflito entre etnia e governo de Nobel da Paz acende alerta de guerra civil na Etiópia

Ainda segundo a agência de direitos humanos da ONU, ao menos 14,5 mil etíopes fugiram para o Sudão desde o início do mês

Redação Jornal de Brasília

13/11/2020 15h48

São Paulo, SP

Pouco mais de um ano depois de ganhar o Nobel da Paz por assinar um acordo que encerrou um conflito de duas décadas com a Eritreia, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, ordenou um bombardeio sobre a província de Tigré, no norte do país.

A operação militar teve início na semana passada sob a justificativa de que os líderes políticos da região desafiavam a autoridade de Abiy e teriam atacado um posto de defesa do governo central para roubar armas e outros equipamentos bélicos.

Autorizado pelo premiê, o Exército etíope recebeu “a missão de salvar o país e a região”. Depois de dez dias, entretanto, a ação deixou centenas de mortos, milhares de refugiados e levou a Etiópia, o segundo país mais populoso do continente africano, à beira de uma guerra civil.

“Existe o risco de que esta situação saia totalmente fora de controle, levando a pesadas baixas e destruição, bem como deslocamento em massa dentro da própria Etiópia e por meio das fronteiras”, disse, nesta sexta-feira (13), Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os direitos humanos.

O comunicado da ex-presidente chilena foi divulgado em resposta a uma denúncia da ONG Anistia Internacional (AI), segundo a qual centenas de civis “foram esfaqueados ou assassinados a golpes de machado” na cidade de Mai Kadra, no Tigré.

A organização “verificou digitalmente fotos horripilantes e vídeos de corpos espalhados pela cidade ou sendo transportados em macas”. A AI assinalou que não dispõe de informação suficiente para identificar os autores do massacre, mas testemunhas o atribuíram à Frente de Libertação dos Povos do Tigré (TPLF).

“Caso se confirme que foram deliberadamente causadas por uma das partes nos combates, essas mortes de civis equivaleriam, obviamente, a crimes de guerra, e deve haver uma investigação independente e responsabilização [dos culpados] pelo que aconteceu”, diz o comunicado de Bachelet.

Ainda segundo a agência de direitos humanos da ONU, ao menos 14,5 mil etíopes fugiram para o Sudão desde o início do mês. Entre os refugiados estão milhares de crianças “exaustas e com medo”.

O ritmo das novas chegadas sobrecarrega a capacidade de assistência do país vizinho, que precisou aprovar às pressas a instalação de um campo de refugiados com capacidade para 20 mil pessoas.

Além da tentativa de escapar do conflito, os etíopes que fugiram alegam que as condições gerais na região estão cada vez mais difíceis, com falta de energia e de alimentos, além de comunicações cortadas.

A situação é decorrente de um estado de emergência, com duração prevista de seis meses, imposto pelo premiê etíope pouco depois do início da ação militar. Segundo o decreto de Abiy, “a situação chegou a um nível que não pode ser controlado pelos mecanismos regulares de aplicação da lei”.

Na prática, o Tigré ficou isolado do restante da Etiópia, com espaço aéreo fechado, movimento nas estradas restrito e serviços de comunicação e internet desabilitados – o que dificulta, inclusive, a confirmação independente da situação do conflito.

O primeiro-ministro acusa a TPLF de traição e terrorismo. O grupo, por sua vez, diz que o governo de Abiy tem perseguido sistematicamente os povos do Tigré desde que assumiu o cargo em abril de 2018, dando recortes étnicos às divergências políticas. O premiê pertence a etnia oromo, a mais numerosa dos cerca de 80 grupos e subgrupos que compõem o complexo mosaico pluriétnico da Etiópia.

Abiy foi o primeiro oromo a ascender ao poder em quase 2.000 anos, depois de cerca de três décadas em que a TPLF esteve no governo. As promessas de liberalizar a economia, de reformas e de estabelecer acordos de paz com países vizinhos encheram a eleição de Abiy de esperança.

Mas a iniciativa de implodir a coalizão liderada pela TPLF se tornou combustível para um discurso etno-nacionalista que visa enfraquecer o premiê. Até mesmo os oromo passaram a enxergar o governo de Abiy de maneira diferente, uma visão que destoa da que havia durante os anos em que foi um dos líderes dos protestos contra a classe política do país.

Pelo menos outros dois aspectos contribuíram para o desgaste da imagem do primeiro-ministro e a forma como ele agora conduz os conflitos internos. O primeiro foi o assassinato, em junho, de Haacaaluu Hundeessaa, músico, ativista, ex-preso político e símbolo dos oromo. Suas canções embalaram os atos que culminaram na derrubada do antigo governo e na chegada de Abiy ao poder há dois anos.

Após Abiy assumir como primeiro-ministro, no entanto, Hundeessaa passou a criticar a gestão, o que influenciou a maneira como a mobilizada juventude oromo enxerga o atual chefe de governo.

A morte do músico gerou na Etiópia uma onda de protestos que, reprimidos pelas forças de segurança do país, deixaram um saldo de ao menos 166 mortos até o início de julho.

O segundo aspecto que serviu de gatilho para acirrar a tensão política entre os etíopes foi o adiamento das eleições legislativas, agendadas para agosto. O pleito era visto como um teste da agenda reformista de Abiy, mas foi postergado, segundo órgãos eleitorais, devido à pandemia de coronavírus.

Quando a decisão foi tomada, em março, a Etiópia tinha 25 casos confirmados de Covid-19. Até esta sexta (13), o país registrou mais de 101 mil infecções e 1.554 mortes, segundo a Universidade Johns Hopkins.

No Tigré, entretanto, opositores ao governo central mantiveram seus próprios processos e elegeram, em setembro, Debretsion Gebremichael como líder local – a Etiópia é dividida em nove regiões administrativas que, em tese, teriam autonomia, mas tradicionalmente o governo central sempre acumulou poder.

Abiy não reconheceu a legalidade do pleito e nomeou Mulu Nega, escolhido pelo Parlamento etíope como líder legítimo da região, em um movimento visto pela TPLF como uma afronta política.

As acusações de que as ofensivas militares de Abiy têm motivação étnica se somaram a outras de que o governo central está afastando oficiais do Tigré de cargos proeminentes da Etiópia.

Na última quarta-feira, a União Africana, entidade que promove a integração de países do continente e é sediada em Adis Abeba, capital da Etiópia, demitiu seu chefe de segurança, Gebreegziabher Mebratu Melese, depois de ele ter sido acusado de deslealdade pelo primeiro-ministro. Gebreegziabher é do Tigré.

“O expurgo de oficiais competentes do Tigré no meio do conflito não é bom para a moral dos serviços [de segurança]”, avalia o analista Rashid Abdi, ouvido pela agência de notícias Reuters.

“Também joga com a noção de que esta é essencialmente uma guerra étnica mascarada como luta pelo poder entre centro e periferia”, afirma ele, sobre a distribuição política entre o governo central e as regiões administrativas.

A posição geopolítica da Etiópia faz com que o desenvolvimento do conflito gere um cenário de incertezas que pode afetar outros países da África. “Um conflito interno prolongado infligirá danos devastadores tanto ao Tigré quanto à Etiópia como um todo, desfazendo anos de progresso vital no desenvolvimento. Além disso, pode facilmente transbordar para além das fronteiras, potencialmente desestabilizando toda a sub-região”, diz o comunicado da ONU, assinado por Bachelet.

As informações são da Folhapress

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