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Mobilidade Sustentável

Ruídos que adoecem

A partir dos impactos do barulho do motor em motoristas, JBr inicia série de matérias sobre eletrificação de ônibus

Vítor Mendonça

29/07/2024 5h00

bruno serafim motorista elétrico

Bruno Serafim, após começar a dirigir elétrico, parou de ter problemas de audição e dores no corpo. Foto: Vítor Mendonça/Jornal de Brasília

A rotina de motoristas de ônibus inclui, todos os dias, lidar com o barulho das engrenagens, do motor, dos passageiros e do trânsito em si, além também de lidar com a trepidação constante do veículo. Apesar dos esforços para uma maior comodidade na direção dos ônibus, o conforto para conduzir o veículo de toneladas por longas horas parece uma realidade distante. Sobretudo, há ainda a pressão da responsabilidade de levar milhares de passageiros aos respectivos destinos de maneira segura e eficaz.

O ruído dos ônibus tradicionais, mesmo os mais modernos, pode ser um fator de estresse para boa parte dos motoristas deste tipo de veículo no Brasil e no mundo. Os barulhos são ouvidos por horas, dias, semanas, meses e anos. Inicialmente, trata-se apenas de um ambiente de trabalho cuja acústica é apenas um passageiro incômodo. Para quem tem mais de 15 anos de profissão, porém, os sintomas decorrentes do longo tempo de exposição constante aos ruídos podem começar a aparecer.

A Perda Auditiva Induzida por Ruído (Pair), portanto, é uma das doenças comuns a motoristas de ônibus. Ela é provocada pela exposição por tempo prolongado a ruídos e está na Classificação Internacional de Doenças (CID 11 – AB37) como uma perda auditiva transitória ou permanente. De acordo com o Ministério da Saúde, “o trabalhador portador de Pair pode desenvolver intolerância a sons intensos, queixar-se de zumbido e de diminuição de inteligibilidade da fala, com prejuízo da comunicação oral”.

E eram justamente esses alguns dos sintomas sentidos por Bruno Serafim da Silva, 42, motorista de ônibus há 16 anos no Distrito Federal. Durante a primeira década de profissão, o condutor dirigiu ônibus convencionais, com motor a combustão e câmbio manual. Pressão e zumbido eram frequentes e, nos exames audiométricos anuais que realizava, havia sempre alterações de perda auditiva no ouvido direito. Além disso, o profissional sentia dores nas costas e no joelho.

“O cansaço físico era muito grande, principalmente na perna esquerda, do lado da embreagem. E no ouvido eu também sentia que ficava com ruído, sentia que não ouvia na mesma proporção que no ouvido esquerdo. Era como se eu tivesse um sininho no ouvido, mas não tinha sininho, era algo realmente causado pela barulheira do motor”, relatou Bruno.

Há seis anos, porém, não se queixa nem da dificuldade de ouvir nem das dores nas costas ou nas articulações do joelho, causadas pelas constantes trocas de marcha e pela tensão no tronco durante as horas de trabalho. Desde 2018, Bruno passou a dirigir ônibus elétricos, sendo o primeiro motorista dos veículos de carbonização zero em Brasília, adquiridos pela empresa Piracicabana. Hoje com seis ônibus eletrificados na frota – os únicos da cidade –, os modelos foram fabricados pela chinesa Build Your Dreams (BYD) em parceria com a Marcopolo.

“Depois que comecei a trabalhar com ele, nunca mais tive problemas de audição nem no joelho – inclusive engordei cerca de 6 kg. Não sinto mais aquele cansaço de quando se trabalha no ônibus convencional. Quando se termina a carga horária no ônibus elétrico, a sensação é que você não trabalhou, bem diferente do convencional”, destacou.

Problema crônico

O estudo “Avaliação da Exposição ao Ruído Ocupacional e da Perda Auditiva em Motoristas de Ônibus Urbano do Distrito Federal”, publicado em março de 2023 pela Universidade de Brasília (UnB), indicou uma possível relação entre a exposição aos ruídos da jornada de trabalho dos motoristas de ônibus ao longo dos anos e a perda auditiva dos profissionais.

A pesquisa de autoria da mestre Larissa Saboia da Rocha, engenheira mecânica, realizada com 500 motoristas de ônibus do DF, indica que quanto maior o tempo de trabalho no ofício, maiores são as chances de constatação da Pair – ou Perda Auditiva Induzida por Níveis de Pressão Sonora Elevados (Painpse), termo utilizado pela pesquisadora. A doença é caracterizada pela deterioração auditiva proporcional ao tempo de exposição ao ruído.

Os motoristas responderam a um questionário sobre a percepção de saúde auditiva pessoal, além de emitirem opinião a respeito de condições que podem aumentar o barulho dos veículos, como a manutenção dos ônibus em que trabalham e a qualidade das vias urbanas. A pesquisa aferiu também os níveis de pressão sonora presentes em ônibus convencionais da capital e reuniu os dados das últimas audiometrias realizadas pelos profissionais.

Os resultados mostraram que cerca de 40% dos trabalhadores possuía indicativo de acometimento de Painpse. Dentro desse grupo, em 60% deles a perda auditiva era bilateral, enquanto em 40% dos casos era unilateral. Ao analisar as faixas etárias dos trabalhadores, entre 27 e 71 anos, notou-se a progressão da perda auditiva nos condutores mais velhos, “o que pode indicar uma combinação entre Painpse e presbiacusia”, isto é, a perda auditiva em razão do envelhecimento, segundo o estudo.

Ao Jornal de Brasília, Larissa explicou que, embora as medições de pressão sonora realizadas na pesquisa não tenham evidenciado condições insalubres de trabalho para os motoristas, a exposição prolongada aos ruídos “pode conjecturar uma condição de trabalho insalubre”.

“O que conseguimos verificar é que os motoristas que tinham 15 anos ou mais de profissão apresentavam um percentual maior de acometimento [da Painpse, cerca de 72,86%] frente àqueles que tinham menos tempo de trabalho”, pontuou a pesquisadora. “Encontramos que 20% dos motoristas relataram uma dificuldade de se comunicar no interior dos veículos, e quase 30% deles indicaram que escutam um zumbido no ouvido – o que é muito frequente na perda auditiva – sempre ao final do expediente”, explicou.

O tempo de exposição ao ruído, portanto, é um fator preponderante para a doença, segundo a pesquisadora. “Pode ser que nessa medição feita não tenha existido uma infração das normas de trabalho, mas o fato deles estarem continuamente expostos, todos os dias e por longos anos [ao ruído constante], pode sim ter um nexo causal com essas doenças”, ressaltou Larissa.

Ambiente sonoro de risco

De acordo com as aferições dos níveis de pressão sonora, os ruídos dentro do ambiente de trabalho dos motoristas ficaram dentro dos padrões estabelecidos pela Norma de Higiene Ocupacional 01 (NHO 01). A diretriz determina que os níveis de exposição ao ruído para uma jornada de trabalho de oito horas não podem ultrapassar 85 decibéis (dBA).

Para avaliar o impacto do ruído nos motoristas, dos 500 que responderam ao questionário, foram selecionados 18 para a aferição da quantidade de dBA que chegava ao ouvido deles na jornada de trabalho. O estudo indicou um nível médio de aproximadamente 74,4 dBA de ruído nos ônibus convencionais avaliados. O mínimo verificado foi de 64,2 dBA e o máximo de 84,1.

Embora dentro de uma condição razoável, segundo a NHO 01, os níveis de ruído de 84 a 85 dBA estão em uma “região de incerteza” quanto à salubridade da exposição quando ocupam mais de 80% do tempo de trabalho. Quando há esse tipo de cenário, a norma recomenda a “adoção de medidas e corretivas visando a redução da dose diária” de ruídos.

Apesar de operarem com os níveis de ruído dentro dos padrões da norma, constatou-se que 72,22% dos 18 profissionais que participaram das aferições de níveis de pressão sonora tiveram indicativo de deficiência auditiva. Em relação ao tempo de contribuição como motoristas de ônibus, mais da metade dos condutores possuía mais de 15 anos de experiência na profissão.

“O que sabemos é que, durante o exercício da jornada de trabalho do motorista, eles estão expostos a uma série de riscos ambientais [meio ambiente de trabalho], então podemos destacar tanto a vibração de corpo inteiro quanto o ruído propriamente, inerentes ao ambiente onde o motorista está – e que são provenientes do motor”, afirmou Larissa.

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