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Domingas, do Brasília Vôlei, superou violência e exploração infantil para vencer na vida

Arquivo Geral

08/03/2016 14h48

Ponto Marketing Esportivo

Pausa na Superliga Feminina para o natal e confraternizações de final de ano. Passagem de ônibus de Brasília à Goiânia em mãos. É hora de viajar. São aproximadamente três horas até o destino final. Chegando na capital goiana retira as malas do ônibus e corre para o guichê da rodoviária à procura de outra passagem. O destino agora é Paranã, município do estado do Tocantins com população aproximada de pouco mais de 10 mil habitantes. Finalmente ela conseguiu comprar o bilhete. O ônibus sai às 21h e chega às 10h da manhã do dia seguinte. Só lhe resta dormir enquanto o tempo passa.

O relógio marca 10h da manhã e Domingas Soares do Araújo desembarca em Paranã. O cansaço é vencido pela saudade e vontade de rever a família após sete anos distante de casa. Ela ainda não chegou na fazenda onde os parentes moram, que fica a 4h do município tocantinense. Para continuar o trajeto, rapidamente procura por caminhonetes que fazem 90% da rota por R$ 360. Ao chegar na ponte da travessia do Rio São Domingos, desce do veículo e aguarda ansiosa pela canoa que a levará até a outra margem do rio. Saindo da canoa, os familiares a esperam com cavalos e, claro, com os corações acelerados. A maratona termina e, enfim, Domingas pode abraçar a mãe, o pai e as irmãs.  

Foi assim que a jogadora do Terracap/Brasília Vôlei retornou para a fazenda onde passou parte da infância no último recesso da equipe. O complexo percurso seria desmotivador para a maioria. Não para ela. “Lá é onde eu esqueço de tudo.  Fico com as pessoas pelas quais dedico minha vida. Quando estou lá quero fazer valer a pena tudo o que eu perdi, datas de aniversário, encontros, tudo o que eu não pude ter”, revela.

Numa família de cinco irmãs e três irmãos, ela é uma das mais novas. Hoje, de fato, Domingas vive outra vida. Jogando no Brasília Vôlei e morando num apartamento mobiliado em Águas Claras-DF, esta realidade é completamente diferente da que ela almejava quando ainda residia em Tocantins. “Saí de casa e tive que ir para a cidade trabalhar em troca de estudo aos seis anos, pouco depois da separação dos meus pais. Só que existe uma escravidão no Paranã. As pessoas pegam os filhos de quem não tem condições para criar e falam que vão dar estudo, mas simplesmente escravizam a criança. No fim você trabalha em troca de um prato de comida”, enfatiza. “Nessa casa eu fazia de tudo. Tive que aprender a lavar, passar, cozinhar e (acredite) cuidar de outras crianças”.  

Violência silenciada

“Era muito triste para a minha mãe ver a gente passar por aquela situação, mas infelizmente ela não podia fazer nada. Quando tinha 13 anos, fui passar as férias com ela e disse que queria uma história diferente para a minha vida.” As recordações voltam. “Lembro de um dia que uma mulher me bateu, tenho até as marcas no corpo. Ela me espancou e acertou minha cabeça muito forte na parede, mas a gente não podia contar para a minha mãe porque essas pessoas nos batiam mais depois. Tinha que dizer que estava tudo bem.”

Alívio no sofrimento

“Saí desta casa onde trabalhava aos 14 anos, quando minha mãe me buscou após saber o que eu sofria. Quando voltei para a fazenda, minha irmã Silvânia, que tinha ido tentar a vida em Palmas, ficou sabendo o que tinha acontecido comigo e pediu a minha mãe para que morasse, estudasse e trabalhasse com ela. Graças a Deus deu certo.”

Inspiração no esporte

O estímulo para ingressar no esporte veio de Silvânia, inspiração de Domingas, que jogava vôlei de areia. “Ela me disse que eu era alta, tinha um porte físico bom e que talvez pudesse jogar. Então me levou para a areia”. Para sua tristeza, essas características não eram suficientes para que se desse bem na modalidade. “Eu era um desastre, muito ruim, não sabia jogar. Chorava e falava que não queria mais.”

Reviravolta

Tudo relacionado ao esporte parecia conspirar contra Domingas. Entretanto, para quem já passou por tanta coisa, não desistiria tão fácil. “Silvânia me ofereceu para o treinador do melhor time da cidade, mas por ter muitos vícios de quem joga na areia, fui rejeitada. Em seguida participei dos jogos escolares de vôlei de quadra pelo Colégio Dom Bosco.” Enfim entramos no assunto vôlei, e aí ela se recorda do recomeço de carreira. “Quando o treinador que havia me rejeitado me viu pessoalmente nos jogos escolares, comentou que tinha futuro e me queria na equipe. Aceitei e depois de um mês de treinamentos fui para a Seleção do Tocantins.”

Já atuando pela Seleção do Estado, conquistou a atenção de alguns olheiros presentes e os convites para atuar fora começaram a aparecer. Entre indecisões e decisões, resolveu junto à irmã que iria para o Rio Grande do Sul, onde ficou por um ano e disputou a Taça Paraná. “Foi terrível, não me adaptei, eu era um bicho do mato, não conseguia, não me adaptava. Quando terminou a temporada voltei para o Paranã.”

Percalços e socorro

 O que parecia estar caminhando bem, voltou a desandar. A ponteira/oposta confessa que na volta “pensou em desistir de tudo”. Ela cruza as mãos e detalha que quando chegou em casa pensou que tinha feito tudo errado. Então sentou-se, fechou os olhos e esbravejou: “Senhor, eu estou aqui, neste lugar, quero dar uma vida diferente para a minha mãe, para a minha família e olha só, estraguei tudo! Voltei para cá de novo e não tenho mais nenhuma chance, mais nenhuma esperança.” A prece parece ter sido ouvida e, já arrepiada, complementa.  “Naquela mesma noite, um homem foi até a fazenda dar um recado que tinha alguém de São Paulo me procurando.”

Este ‘alguém’ era Maurício Thomas, técnico da Seleção Brasileira Juvenil, que a viu jogar ainda na Taça Paraná e queria a convocar. De pronto, o treinador se dispôs a procurar um clube para treina-la. “Deus colocou uma luz na minha vida. O Maurício me ofereceu ao São Caetano e o time me quis.”

Na noite de reviravoltas Domingas embarcava para a maior viagem de sua vida. O destino era São Paulo. Fazendo as malas, com os olhos cheios de lágrimas, relembra. “Me ajoelhei, comecei a chorar e falei: Senhor Deus, eu não sabia se o Senhor existia, mas a partir de hoje não duvidarei que o Senhor existe.”

Redenção

Cinco anos se passaram no São Caetano e agora, vestindo a camisa do Brasília Vôlei, Domingas se prepara para mais um dia de treinamento no novo clube. “Creio que hoje, aonde estou, ainda não é nada. Sei que Deus tem grandes planos para minha vida. Ele me moveu até aqui.” Insatisfeita, emenda. “Ainda não sou a jogadora que pretendo ser. Almejo lutar, batalhar, ralar para chegar mais à frente.”

“Primeiramente você tem que crer em Deus. Na vida é preciso crer em algo, em alguém superior que está nos olhando e nos guiando. Se você não tiver essa motivação, não tiver ninguém para crer, alguém que vai te ajudar a superar os limites, você não consegue superá-los porque vai ser só você contra você. Se Deus está nos movendo, homem nenhum pode falar “não” para você. Ninguém aqui na Terra tem o poder de dizer que não é possível. Para mim, muitos falaram não. Muitos falaram que meu lugar ela lavando chão, lavando privada dos outros. Só que Deus me mostrou que eu podia ir além e acreditei. Não deixe ninguém frustrar seus sonhos, sempre vai haver uma luz para você.”

por Shizuo Alves

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