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(in) Formação

Muito além do mimimi

Desde a eleição e da posse de Jair Bolsonaro, o mundo cada vez menos virtual das redes sociais divide-se entre aqueles que se aferram com todas as forças à crença de que é exagero o discurso dos que denunciam a violência e o preconceito contra as minorias no país

Rudolfo Lago

19/12/2019 5h02

Dificilmente algo irá resumir melhor esse complexo ano de 2019 que termina que o retrato impresso de forma violenta em tons de roxo e vermelho no rosto inchado de Karol Eller. Desde a eleição e da posse de Jair Bolsonaro, o mundo cada vez menos virtual das redes sociais divide-se entre aqueles que se aferram com todas as forças à crença de que é exagero o discurso dos que denunciam a violência e o preconceito contra as minorias no país, sejam de raça, de gênero ou de orientação sexual. E aqueles que apontam para as evidências de que exagerada mesmo é cada vez mais a violência e o preconceito que se demonstra contra as minorias no país, de raça, de gênero ou de orientação sexual.

Esse foi o debate que se estampou na cara da youtuber bolsonarista. Ela própria personagem importante da legitimação do discurso do primeiro grupo. Lésbica, reforçava a ideia de que a violência contra aqueles com perfil igual ao dela era muito mais parte de um discurso de esquerda, usado por organizações LGTB. “Mimimi”, usando o odioso termo da moda, que considera frescura qualquer dor alheia.

Independentemente de quem tenha sido o autor da violência contra Karol Eller, a razão homofóbica da sua agressão, conforme o relato, é inconteste. Karol estava num quiosque da Barra da Tijuca, no Rio, com sua namorada. Um homem mexeu com ela, considerando um absurdo a relação entre as duas moças. E partiu para a violência. Nada além do que claríssimo preconceito de gênero, que metade do FlaXFlu das redes sociais considera exagero, ou “mimimi”.

Os socos e pontapés que chegaram a deixar Karol Eller desacordada no quiosque da Barra da Tijuca mostram que o preconceito, antes de se manifestar, não pede a ninguém carteirinha nem filiação partidária. E é nesse ponto que ele merece considerações mais profundas.

A nova leva de direita que ascendeu a partir da eleição de Jair Bolsonaro mistura questões ligadas a costumes e comportamentos aos temas ideológicos. O debate entre esquerda e direita que se dava no século passado, especialmente durante a Guerra Fria, estava estabelecido a partir de diferenças na abordagem das questões econômicas e sociais e do papel que deveria ter o Estado nesse enfrentamento.

De um lado, estavam aqueles que consideravam necessária a interferência do Estado na regulação da economia e imperiosa uma redistribuição da riqueza de forma igualitária. Essa era a turma da esquerda. Do outro lado, aqueles que consideravam que o caminho do crescimento estava na liberdade econômica, na formulação de um Estado mínimo, com pequeníssima ou nenhuma interferência na economia. Era a turma da direita liberal. Havia outro grupo identificado com a extrema-direita, com o fascismo e com o pensamento militar que se estabeleceu por aqui durante a ditadura militar que defendia um Estado forte não para promover igualdade social, mas para produzir controle, estatizante e nacionalista.

Ainda que os grupos de direita, especialmente no extremo, tivessem também comportamento mais conservador nos costumes, não era em torno deles que o debate se dava. Na verdade, conservadores nos costumes eram também muitos daqueles que se identificavam com a esquerda. Na União Soviética e em Cuba, a homossexualidade era crime, era considerada um comportamento burguês, contrário à revolução e que dava cadeia. Na Rússia atual, ainda é crime. Assim, posicionamentos relacionados a questões de gênero não estavam no debate ideológico.

Eis aí o risco que se estampou com cores vibrantes no rosto de Karol Eller a resumir os nossos tempos. Quando a política e as ações de Estado se misturam com o preconceito, o sinal de perigo que se acende é mais do que vermelho. Passamos a ficar muito próximos dos Estados autoritários e de seus perigosos cidadãos de uniforme. Vistam eles a camisa cáqui no nazismo ou a verde do integralismo. Ou a vermelha dos camaradas cubanos, soviéticos, albaneses, chineses, etc…

O que desejo para 2020? Que a estampa no rosto de Karol Eller rapidamente se torne um esmaecido retrato na parede…

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