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Coluna Informação #068 – Anatomia da mentira

O caso do prefeito da cidade mineira de São Lourenço, Doutor Lessa, é um exemplo acabado, de estudo mesmo, de como os especialistas em fake news constroem e propagam uma mentira

Rudolfo Lago

19/03/2021 5h00

Assim se constrói o crime perfeito. Quem de boa fé irá duvidar da imagem e da palavra do próprio prefeito de uma cidade quando ele afirma sem receio que não há mortes por covid-19 na cidade. Se ele vai ainda mais além e afirma que ali não há internações em UTI? Se diz, com a firme convicção dos justos, que o comércio está funcionando na cidade e que os turistas estão frequentando normalmente as suas famosas estações de águas termais.

Quem, ainda mais se estiver com a firme disposição de acreditar, duvidará do próprio prefeito de uma cidade se ele afirma em entrevista em vídeo a um vereador que a sua cidade é um oásis no meio do caos planetário provocado pela covid-19?

O caso do prefeito da cidade mineira de São Lourenço, Doutor Lessa, é um exemplo acabado, de estudo mesmo, de como os especialistas em fake news constroem e propagam uma mentira. No vídeo que circula na internet, há três pessoas na sala de uma casa, que parece ser a casa do prefeito. A primeira delas, uma vereadora bolsonarista de São Lourenço, Sargento Marissol, apresenta a segunda pessoa, um vereador bolsonarista de Uberlândia, Cristiano Caporezzo. E esse vereador começa, então, a entrevistar o prefeito, no sentido de mostrar à população de Uberlândia que ela devia seguir o que estaria sendo feito em São Lourenço. Segundo ele, abrir o comércio, eliminando restrições, e passar a usar nos pacientes o tal “tratamento precoce” da covid.

“O prefeito de São Lourenço, médico há mais de 40 anos, está aplicando com sucesso na cidade o tratamento precoce. Nenhum comércio foi fechado. A cidade está funcionando normalmente. Zero de internação. Zero morte por covid”, diz o vereador de Uberlândia.

Então, o próprio prefeito, com ares de especialista sanitário, diz que sua equipe multidisciplinar descobriu um “delay” entre o início dos sintomas e o agravamento da doença. Nesse intervalo, deve-se, segundo ele, usar o tal “tratamento precoce”. E repete: “Zero de internação. Zero de óbito”. Em seguida, Cristiano pergunta sobre o isolamento. E o prefeito diz: “Nós percebemos que o lockdown não é a solução. Não fechamos a cidade. Não quebramos o comércio”.
Tudo certo e muito bom para produzir verdadeiros orgasmos nas hostes bolsonaristas se as informações não fossem desmentidas por fontes oficiais.

Por incrível que pareça, algumas pelas próprias páginas da prefeitura de São Lourenço.
Primeiro: não é verdade que não houve óbitos pela covid-19 na cidade de São Lourenço. O site boatos.org, especializado em desmontar fake news, mostra que o SUS Analítico, sistema do Ministério da Saúde que contabiliza os casos da doença, informa que houve 45 mortes na cidade desde o início da pandemia. Segundo o sistema, 14 delas ocorreram recentemente, desde o dia 27 de fevereiro (a matéria do boatos.org é do dia 15 de março).

Espantoso é que o dado da página da prefeitura comandada pelo prefeito que no vídeo fala em “zero óbitos” aponta cinco mortes a mais que o dado do Ministério da Saúde: 50, sendo três delas nos últimos 20 dias antes do dia 15, data da matéria.

Também não é verdade que os leitos de UTI não estão ocupados. Aqui, diga-se que a prefeitura afirma que nenhum dos casos de internação são de pacientes de São Lourenço. Seriam de regiões próximas. Mas há aqui um outro áudio do prefeito no mínimo curioso por desmentir o estado de graça da simpática cidade mineira. “É um verdadeiro estado de guerra”, diz o mesmo prefeito que gravou o vídeo com os dois vereadores bolsonaristas. “Desesseis pacientes entubados, dois na máscara que vão ter que precisar de respirador. Imagem triste, terrivelmente trise que eu nunca vi nos meus 43 anos de formado”.

Finalmente, não é verdade que São Lourenço não tenha qualquer tipo de restrição das suas atividades. O decreto municipal 8.178 da prefeitura de São Lourenço, por exemplo, decretou “situação de emergência” na cidade e estabeleceu restrições para o funcionamento, por exemplo, de bares e restaurantes, que só puderam funcionar entre as 6 da manhã e as 11h59 da noite. Academias só podiam funcionar mediante agendamento. Serviços não essenciais só podiam atender um cliente por atendente. E os hotéis ficavam com sua capacidade limitada a 50%. Houve restrição nas atividades da própria prefeitura. Pode-se argumentar que em diversas outras cidades as restrições são mais rigorosas. Só não se pode dizer que em São Lourenço tudo funciona normalmente.

Assim se constrói uma mentira. E é dessa forma meticulosa que se consegue que ela circule produzindo seus efeitos.
Agora, por que um prefeito põe a cara para mentir sobre fatos que podem ser facilmente desmentidos pelos próprios dados da sua prefeitura, por que prega em vídeo algo que não pratica de fato, qual o propósito de se disseminar dessa forma algo em que não se parece acreditar assim com tanta veemência, aí é papel para os bancos das academias de psiquiatria no estudo desse sanatório geral em que se transformou o país.

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