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Coluna Informação #060 – O dilema das redes

Tenha ou não sucesso o segundo processo de impeachment aberto contra o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, há, porém, um fator que a essa altura parece inconteste

Rudolfo Lago

15/01/2021 5h00

Atualizada 14/01/2021 23h52

Tenha ou não sucesso o segundo processo de impeachment aberto contra o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, há, porém, um fator que a essa altura parece inconteste: a conjuntura que por lá permitiu a ascensão daquele líder de direita e pele alaranjada mudou. E não apenas lá nos Estados Unidos. Outros países do mundo também já vêm trocando os líderes mais radicalmente conservadores que outrora haviam escolhido por outros de perfil mais moderado. E, de qualquer modo, por ser a principal nação do planeta, é mais do que comum que as ondas que se espalham pelo mundo tenham na maioria das vezes a sua origem vinda das costas norte-americanas.

Parece crescer neste momento nos EUA uma noção de que a escolha de Trump como presidente foi um tresloucado ponto fora da curva. Que precisa agora ser corrigido, sob risco de comprometer a própria democracia que os americanos duramente conquistaram primeiro guerreando contra os ingleses e depois guerreando contra si mesmos na Guerra de Secessão. Talvez o que venha a acontecer por lá inspire outras tentativas pelo planeta de correções de tresloucados pontos fora da curva.

Há, porém, um outro fator que Trump veio à tona, e que permanece e permanecerá mesmo diante da já visível mudança de conjuntura. A ascensão de Trump tornou visível e deu voz a um submundo extremista e extremado que antes estava escondido em cavernas do planeta. Essa gente agora recusa-se a voltar para os nichos de sombras onde antes habitavam. E essa gente é perigosa.

A torrente de idiotices que sai, por exemplo, das páginas do QAnon, o movimento de extrema-direita que ajuda a sustentar Trump, é inacreditável. E qualquer pessoa de bom senso só pode ter como reação rir diante de tamanha quantidade de asnices. De acordo com o QAnon, figuras como o ex-presidente Barak Obama, a candidata derrotada por Trump na sua eleição, Hillary Clinton, o ator Tom Hanks e até o papa Francisco fazem parte de uma ordem de satanismo e pedofilia, que se junta em reuniões para, entre outras maldades, beber o sangue de bebês, sob a crença de que isso lhes garante vida eterna. Para o QAnon, Trump e outros nomes da nova direita seriam os salvadores do mundo ao enfrentarem essa gente.

Há 30 anos, se alguém chegasse a uma redação de jornal tentando obter espaço para disseminar essas imbecilidades seria, na melhor das hipóteses, despachado pelo repórter com alguma cordialidade. Mas, agora, não apenas esses idiotas têm voz como têm capacidade de influência.

Para se ter uma ideia dessa capacidade de influência, em 2016 disseram que esses tais satanistas se reuniam no porão de uma pizzaria de Washington. Um maluco acreditou, invadiu a pizzaria com uma escopeta para procurar a tal reunião satânica. Só encontrou sacos de farinha de trigo no porão. Felizmente, ninguém saiu ferido, e o maluco pegou quatro anos de cana.

Ocorre que do ridículo dessa situação a coisa evoluiu. Este ano, o QAnon elegeu a deputada Marjorie Taylor Greene. E se Trump não se declara adepto do movimento, ele também nunca o condenou.

Quando o alaranjado presidente americano incitou os cidadãos a invadir o Capitólio, numa ação maluca que resultou na morte de cinco pessoas, entre os líderes da invasão estavam pessoas ligadas ao QAnon. O maluco vestido de vaca – ou seja lá do que seja –, cujo apelido é Yelowstone Wolf, é um deles.

A existência agora visível e com alguma influência desses grupos de amalucados tem como origem a ascensão das redes sociais. Foram as redes sociais que deram voz aos idiotas. A romântica ideia original de que a internet democratizaria o acesso das pessoas ao conhecimento do mundo falhou. As principais bibliotecas, o acervo do Louvre e de outros museus, estão disponíveis. Mas também passaram a estar disponíveis uma quantidade imensa de bobagens. E elas, para muito, parecem ser mais atraentes.

O acesso a toda ordem de informação não eliminou o fato de que conhecimento exige conhecimento. Para muita gente, é complexo demais conseguir, por exemplo, compreender como funciona o sistema planetário. Como é possível que um complicado conjunto de forças faça com que os planetas girem em trajetórias em torno do sol, atraindo e repelindo uns aos outros. É mais fácil retroceder mais de 500 anos à impressão que tinham antigos bárbaros de que a Terra é plana, porque é assim que ela parece à primeira vista.

Em vez de agregar a todos numa corrente planetária, as redes isolaram as pessoas em grupos, conforme seu grau de interesse e conhecimento. Assim, os ignorantes e os malucos retroalimentam-se em redes onde só conversam com outros ignorantes e malucos. Mas onde também se organizam.

O diretor executivo do Twitter, Jack Dorsey, manifestou-se ontem sobre a decisão de banir Trump da rede. Para ele, uma decisão acertada, mas que encerra nela um problema e um fracasso. A rede sabe que está dando voz à incitação da violência. E age para conter isso. Mas sabe que, assim, fracassa na ideia de fazer parte de uma imensa ágora digital que dá voz a todos.

Esse é o grande dilema agora imposto às redes. Nossa Constituição diz que “é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato” e regras semelhantes existem em todas as demais democracias do mundo. Ou seja: todo mundo é livre para falar a besteira que lhe der na telha. Mas ninguém é livre para incitar a violência ou sugerir que as pessoas se voltem contra as próprias leis e as Constituições. Encontrar a sintonia fina entre a garantia de liberdade de expressão e a manutenção da ordem é agora o grande desafio. Do contrário, as redes acabarão por colocar em grave risco o equilíbrio político do planeta.

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