Menu
Estilo de Vida

“Não Vão Me Barrar”: a luta de Valéria Marques contra o racismo através da educação 

Da vivência do preconceito à conquista de espaço como educadora e empreendedora, sua trajetória revela força e transformação contra o racismo.

Agência UniCeub

19/11/2025 10h40

image

Professora Valéria Marques ministrando aula prática no curso de gastronomia do CEUB

Por: Juan Costa

Aos 49 anos, Valéria Marques atua como professora do curso de Gastronomia no Centro Universitário de Brasília (CEUB), onde orienta estudantes em formação na área. Também é responsável pelo Tacho de Yabá, marca que celebra a culinária do afeto e a ancestralidade. Sua trajetória profissional inclui episódios de racismo, que marcaram o percurso até à docência e o empreendedorismo.

No CEUB desde o início de 2025, ela vê a presença na docência universitária como resultado de um processo de persistência. Enxerga na gastronomia uma prática que ultrapassa a técnica, com potencial para estabelecer vínculos entre pessoas. Essa filosofia orienta seu trabalho em sala de aula desde o primeiro contato com cada turma.

“O primeiro contato com a turma é com a aula do encantamento.  É o chamado para o aluno perceber na professora alguém próximo, não como amiga, mas com uma história de proximidade”, afirma.

Ela conta que em todas as turmas, sem exceção, havia um rosto, uma alma, que era um reflexo de si mesma. “Eu estou me vendo ali”. Por vezes ela pensou que sua missão estava sendo cumprida: não apenas por ensinar, mas também por ajudar a abrir portas e humanizar a jornada de cada estudante.

“Todos os dias eu tenho um aluno me marcando em uma postagem”. “A mulher que me inspira”, completou Valéria.

O resgate da cultura e a cura pela comida

Paralelamente à vida acadêmica, Valéria é a responsável pelo Tacho de Yabá, uma marca de doces e quitutes simples, mas carregada de conteúdo. O nome escolhido tem como significado: Tacho, que é o recipiente de cobre, e Yabá, que significa em Iorubá “mãe”.

“É presentear com comida. É curar uma dor. É um consolo”, explica a chef. 

image
image

Tenda Tacho de Yabá no festival Latinidades – Fotografia Mel Soares

A “comida de afeto” de Valéria evoca memórias: O seu objetivo é transferir através de doces simples; cocadas e balas baianas, não apenas a sensação ao paladar, mas para o coração daquele que a digere. Com a competência que sua preparação tem de alcançar o âmago de quem as degusta. É ativar a memória para um tempo bom, um lugar bom ou um parente querido.

O empreendedorismo da professora é, portanto, uma manifestação cultural e emocional que não surgiu de um plano, mas da necessidade de complementar uma renda. Mãe solo, trabalhava como doméstica e fazia doces nas casas onde prestava serviço e foi ali, entre panelas emprestadas e horários apertados, que o talento começou a se revelar.

O Tacho de Yabá inclusive nasceu desse processo. Antes mesmo de ter um nome para a marca, já existia no afeto, na força e na ancestralidade que sempre guiaram as mão de Valéria. “Yabá” representa também as divindades femininas do candomblé, símbolo da potência e da criação que a estimulam.

O tacho é um instrumento de alquimia, onde o simples se transforma em algo precioso. Hoje, para Valéria, empreender é um ato político e de resistência. É ocupar espaços, valorizar os saberes da mulher preta, e mostrar que a doçura também é uma forma de força e de existência.

image
image

Valéria Marques apresentando a marca Tacho de Yabá ao CEUB – Fotografia Evandro Lemos

O preço da conquista

Apesar das realizações profissionais e da excelência, Valéria lida diariamente com a violência racial.

“Todos os dias eu vejo racismo”, conta.

Um dos episódios mais recentes ocorreu em um restaurante em Brasília. Ela estava com seu estilo de vestimenta: pano amarrado na cabeça e vestido característico da cultura que adota, quando uma desconhecida se aproximou e entregou os pratos das refeições julgando que a professora trabalhava no lugar. 

Já em 2017 ela se encontrava trabalhando em um restaurante que prefere não identificar, e nele houve uma mudança de pessoal na gerência, e uma nova mentalidade havia ocupado o cérebro do estabelecimento. Antes disso ela tinha um relacionamento muito bom com os donos, mas conta que com a troca sentiu que na nova gestão não apreciavam sua competência.

Que em um determinado momento, inclusive, recebeu a sugestão de que o serviço poderia ser concluído dentro da casa da nova chefe e não na cozinha do restaurante. Foi uma das vezes que Valéria se sentiu ferida.

Para Valéria o racismo não se limita apenas à raça ou à classe social. Acima de tudo, ele nega a dignidade e a presunção de competência da mulher negra em qualquer ambiente. No entanto sua determinação de não se deixar abater repousa no grande conceito que norteia a jornada dela:

                “Eu falo como mulher preta. Não vão me barrar”, afirma a professora

De onde vem a força?

O caminho de Valéria foi pavimentado pela luta. Ela é filha da mineira Neuza, que sofria de esquizofrenia. Aos sete anos, em uma vida “bem precária”, ela e os irmãos passaram a residir em Dianópolis (TO), após o companheiro de sua mãe ameaçar matar todos colocando fogo na casa em que moravam. 

Aos nove, Valéria saiu de casa para ser “cuidada” por outra família, uma prática comum na época onde menores de idade eram submetidos a trabalho em troca de roupa usada e comida.

           “Minha inocência foi tirada,” lamenta.

Foi então que, com 12 anos, ela entendeu que o tratamento era diferente. Na casa onde morava foi vítima de abuso sexual pelo patrão, e como se não bastasse foi obrigada a provar que não era ela a culpada. Sua patroa chegou a indagar se ali não existia conivência.

Valéria, no processo de maturidade, sentia que naquela casa também existia o racismo presente no mundo, por todas as vezes que teve de ouvir: “Você é preta, você é menos, você fede”. Foi então que percebeu que ali não existia família, proteção e amor

Com 14 anos, Valéria veio para Brasília, sabendo apenas “cuidar de criança”. Ela conta que nem sempre sonhou com a cozinha e que em um determinado momento gostaria de ser atriz, mas que infelizmente não reunia condições financeiras para continuar com os desejos artísticos.

A gastronomia, contudo, a escolheu por necessidade. Aos 16 anos, ela já tomava conta de uma casa e estudava. Foi então num trabalho com a Dona Maria, que produzia doces e salgados, que acendeu o despertar para a confeitaria.

A virada definitiva veio através da educação. Depois de 11 anos sem estudar, em 2015, ela decidiu se matricular no EJA, pois entendia que para o progresso familiar, era necessário a capacitação na educação. 

Ela concluiu que estar formada no ensino médio era uma forma de se blindar e servir de exemplo para as filhas; Marla e Ayla, e futuramente, para o neto Dante, para que nunca passassem pelas dificuldades vivenciadas por ela.

Após se formar no EJA veio a ambição pelo ensino superior. Matriculou-se em 2015 no IESB, e foi em 2019, aos 43 anos, que ela se formou em gastronomia pelo Instituto.

image
image

 Professora Valeria Marques – fotografia Juan Costa

             ” A educação é transformadora, com 40 anos você pode se formar, e dar um avanço na sua vida. Completou Valéria Marques

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado