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O “Universo do Canto Falado”

De casa, RAPadura Xique-Chico arrumou tempo para uma conversa com o Jornal de Brasília sobre os cenários musicais, políticos e humanitários no Brasil e no mundo

Olavo David Neto

02/06/2020 11h28

O canto nordestino ganhou beats e remix quando o cearense radicado em Brasília Francisco Igor Almeida Santos percebeu as semelhanças entre repente, coco e rap. Aos 35 anos, dos quais 20 investidos “nessa longa viagem”, RAPadura Xique-Chico, como entrou para o mundo artístico, lançou Universo do Canto Falado, que, assim como Fita Embolada do Engenho (2010) – mixtape que lhe deu notoriedade -, uniu a cultura da região à qual se declara ao flow do gênero norte-americano.

Assim como Chico Science e Nação Zumbi nos sons das guitarras distorcidas em meio ao maracatu, RAPadura não foge da crítica social e aborda até questões migratórias e de refugiados nas letras. Tem opiniões fortes sobre Jair Bolsonaro (sem partido) e inclusive se recusa a pronunciar o nome do chefe do Executivo, a quem considera “um político despreparado”, e cujo governo “está conduzindo o Brasil para um apocalipse.

De casa, Xique-Chico arrumou tempo entre produções, que não cessaram no isolamento, para uma conversa com o Jornal de Brasília sobre os cenários musicais, políticos e humanitários no Brasil e no mundo. 

Como está sua rotina em meio à pandemia? Consegue conciliar gravações e produção com as recomendações e os cuidados indicados pelas autoridades de saúde? 

Tenho ficado em casa e seguido todas as recomendações para minha segurança e dos meus próximos. Fui abençoado com um espaço em meio a natureza que me permite criar e produzir minhas coisas dentro do meu próprio lar. Essa quarentena tem me levado a muitas reflexões, inclusive de ficar um pouco em silêncio e ouvir o som do planeta, dos bichos e da natureza. Eles estão querendo nos passar algo importante, mas, para isso, precisamos ouvir, sentir, ter humildade pra reconhecer nossos erros e aprender. Só assim poderemos voltar ao mundo depois de tudo isso e torná-lo um lugar melhor para todos. 

Ter intimidade com Coco, Repente e com a Embolada facilitou a entrada no rap? A velocidade das suas rimas impressiona e deixa muita gente pra trás. 

O Repente é bem mais antigo que o RAP, né? Meu primeiro contato com o Rap foi através do Repente e da Embolada. Toda vez que ia no centro de Fortaleza com minha mãe, a gente contemplava essa arte linda na rua, em sua máxima expressão corporal e espiritual. Ter conhecimento sobre as diversas métricas e modalidades de escrita me trouxe uma certa facilidade e intimidade com o rap, pois todos esses estilos fazem parte do “Universo do Canto Falado” termo que criei para explicar um pouco dessa infinidade mágica do imaginário Nordestino. 

Você tem uma técnica de respiração específica? 

Não tenho nenhum método mais técnico, o que faço é conectar meu corpo com minha alma e fluir de maneira leve em cima do beat, como se fôssemos um. Estar conectado ao presente momento permite mais concentração e melhor fluidez. Para uma melhor dicção indico o exercício de rimar algo mais rápido com a caneta embaixo da língua, vai te dar mais dificuldade na hora de rimar, mas quando tirar vai conseguir pronunciar melhor as palavras e dançar com elas.

Seu novo álbum reduz um pouco a participação do rap e traz mais traços da cultura popular nordestina. Essa guinada ainda maior é uma resposta ao recrudescimento do preconceito contra a região?

Nesse novo trabalho eu quis, de fato, me desafiar a algo novo como artista,  quis explorar um pouco mais a extensão vocal. Ao mesmo tempo que sou Rap, também sou Rock, sou cordel falado e psicodélico, é uma junção de toda bagagem musical e lírica que trago nessa longa viagem de 22 anos de estrada. O Rap está presente em tudo que sou e faço, em todas as faixas tem sua presença marcante se abraçando a outros estilos e ousando, todos somos uma mistura de muitas coisas. O ato de continuar vivo, forte e bem, já é uma resposta ao preconceito, o sorriso e a criatividade do povo nordestino derruba qualquer muro e fronteira. No fim das contas todos somos um, somos de todo canto e de canto nenhum.

Foto: Eddie Silva/Divulgação

Expurgo foi gravada num contexto de “picuinha” entre Nordeste e Sul, com críticas político-sociais contundentes de um lado e “lacrações”, do outro. Acha que parte do rap brasileiro perdeu o cunho de denúncia?

Sim, perdeu-se um pouco da denúncia, da crítica, e até da própria essência. No momento em que nossa nação mais precisa da participação ativa dos artistas na luta, a maioria se esconde e não se pronuncia. Isso teve um impacto gigantesco no resultado das eleições. Somos formadores de opinião, temos a atenção das pessoas. A minha esperança em meio ao caos é que ainda existe muita gente sensível e humana fazendo arte. A denuncia ainda é presente no rap brasileiro, só que em menor escala. Se colocar no lugar do próximo talvez nos faça pensar e agir melhor, pensando coletivamente.

O presidente da República chegou a classificar os nativos da região como “paraíbas”, termo pejorativo utilizado no Rio, assim como o “baiano” em São Paulo. Como você avalia a pessoa e a gestão do chefe do Executivo?

Lamentável! Existe uma sensação de inferioridade por parte do branco racista, por isso ele tenta rebaixar o outro para se sentir superior, para se mostrar por cima. Isso é uma cultura de ódio que só faz parte do mundo deles, não do nosso, pois, na realidade, não existe uma inferioridade intelectual entre as pessoas, o que existe é a desigualdade em sua forma mais cruel. Em mais uma de suas cenas bizarras, esse tal sujeito que prefiro nem citar, além de ser um político despreparado que está conduzindo o Brasil para um apocalipse, acabou dando apoio aos brancos racistas dos Estados Unidos, fazendo uma saudação com um copo de leite aos supremacistas brancos, um absurdo completo com tudo que estamos vivendo nesse momento tão difícil para todos. 

Quase um ano depois, o óleo ainda enegrece o litoral nordestino. Como vê a ação política em torno da crise e o silêncio que cobriu o assunto? 

Como sempre, prevaleceu o interesse econômico deles em detrimento do meio ambiente, do povo, da humanidade. Nada foi feito porque nunca é feito, né? Assim como não fazem nada com a questão dos índios massacrados, da Amazônia devastada e vendida, Brumadinho e Mariana. Não faz parte de seus interesses corrigir os erros, cuidar da nossa natureza. Nossa gente sempre foi a base. A mim importa a arquitetura humana, pois o Brasil só vai para achar um caminho quando o povo tomar a direção e conduzir. Vivemos em um País sem Norte [título da terceira faixa do novo álbum].

Em Aboio são feitas críticas ferozes no tema migração. É possível traçar paralelos entre nordestinos e refugiados do mundo árabe? Com RAPadura no Palácio do Planalto, quais seriam as políticas de migração e para refugiados?

A mesma situação acontece e se repete em todas as partes do mundo. As pessoas deixam suas casas, suas terras e famílias, seja buscando uma melhoria de vida ou fugindo pra sobreviver em meio a desumanidade. Os imigrantes são tratados da pior maneira possível em solos estrangeiros, mesmo com tanta contribuição, mão de obra, sangue e suor derramados. Não são valorizados, são maltratados e até expulsos. Se eu fosse presidente de algum país, buscaria justiça social, buscaria abrir novas portas de emprego pra quem não tem, isso traria um equilíbrio na economia e permitiria que as pessoas vivessem de maneira mais digna e humana em suas terras de origem, dando a oportunidade de uma vida mais saudável e feliz em seus lares para que não precisassem migrar e sofrer lá fora. Nossa casa sempre será o nosso paraíso. Se tivermos tudo em nosso quintal, não precisaremos derrubar o muro do vizinho. Dessa maneira, nos valorizaremos e regaremos melhor a nossa raiz.

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