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Literatura

Matilde Campilho estreia na prosa em ‘Flecha’ e celebra a história de contar histórias

Autora do sucesso ‘Jóquei’ é uma das estrelas da Bienal do Livro de São Paulo e diz se fiar agora numa escrita com menos pressa

FolhaPress

06/07/2022 15h50

A escritora portuguesa Matilde Campilho, autora de ‘Flecha’ e um dos destaques da Bienal do Livro 2022 – Ana Paganini/Divulgação

WALTER PORTO
SÃO PAULO, SP

“Há muitos anos que não escrevo poesia”, diz a portuguesa Matilde Campilho, que se tornou num só livro curto, “Jóquei”, uma das poetas mais celebradas de sua geração.

Ao explicar o porquê de hoje priorizar contos e ensaios, a escritora não exibe qualquer sinal de menosprezo pelo gênero que a tornou conhecida, mas desenha um fascínio cada vez mais amplo pela literatura -o caminho da poesia à prosa não é evolução, mas metamorfose.

“Da poesia herdei muitas coisas -a forma de observar, a atenção ao detalhe, àquilo que não é dito; a atenção ao que está por trás do aparente real”, diz, em entrevista, a autora que é um dos destaques da Bienal do Livro de São Paulo. “Mas, na hora de transformar, hoje firmo muito mais a minha escrita numa prosa concreta e descritiva.”

“Poesia tem mais a ver, para mim, com embate -é o espanto do mundo derramado na página, ou uma tentativa disso. Havia uma espécie de pressa na minha poesia. A prosa tem mais tempo e é mais contínua. Explica as coisas mais devagar. Tenho 40 anos, agora agrada-me bastante o tempo assim mais lento.”

A nova fase de Campilho está expressa em “Flecha”, um livro com centenas de narrativas curtas, poucas com mais de uma página, boa parte com menos de dez linhas -exercendo um dom raro de construção de mundos inteiros em poucas frases.

“Passou cinco anos a estudar plantas e flores e frutos e caules na universidade. No fim recebeu um papel reciclado e assinado e que confirmava a sua existência como botânico. Hoje ele está sozinho, sentado no cume da montanha, observando a mesma pétala púrpura de genciana há mais de 18 horas.

Nela, finalmente, consegue achar a impressão natural do rosto de sua avó morta.”

Este aqui é um conto inteiro, nem dos menores da coletânea. Como em vários deles, Campilho recorre à artimanha da conclusão insólita, típica dos contistas. Em outro texto, o menino Alfredito fica preso na gola da própria blusa, lembra como sua mãe o ensinou a se vestir, apenas para um final melancólico revelar que ele vive sozinho há anos.

É um livro que soa como experimentação de uma escritora com deslumbre pelo mundo a sua volta, assim como soava “Jóquei”, mas ela ressalta que há “pouquíssimas semelhanças” entre os dois.

O novo livro, diz ela, traz “a ideia de uma flecha que é lançada no começo do mundo e que vai atravessando vários tempos, várias épocas, vários quartos e campos de batalha”. “Contar histórias muito diferentes entre si, sem uma manifesta ligação (à exceção de duas ou três), mas afinal conectadas por essa passagem.”

A edição brasileira do livro abre com um breve ensaio em que Campilho explicita essas intenções, no que era o texto de fechamento da edição portuguesa da obra, publicada em 2020.

Além disso, só nesta versão que acaba de sair há uma espécie de índice que mostra as referências reais -imagens, biografias, acontecimentos- que inspiraram a imaginação de Campilho.

As anotações “existiam nos meus papéis, na minha parede, algumas apenas na minha cabeça”, diz a escritora. O livro não precisa delas para funcionar, mas ela afirma acreditar numa literatura que seja a mais aberta possível. “Este é um livro que aponta para as histórias como fator de união, como facilitadoras de comunidade. Quanto mais claro o livro puder ser, melhor.”

“Flecha” funciona, na verdade, como uma homenagem ao ato de contar histórias, como fica claro pelas palavras empolgadas que a autora derrama nesta entrevista, que fez questão de conceder por escrito.

“É antes um levantar de chapéu à literatura em si, à sua existência. Tem uma postura de gratidão”, afirma. “Com este livro eu quis fazer uma mistura entre a literatura como a reconhecemos hoje, que ainda deriva dos clássicos; e a literatura oral, a da conversa, a da partilha do trivial.”

“Quis aliás focar o texto várias vezes em situações banais, de aparência indiferente, mas nem por isso sem relevância. Porque afinal, a meu ver, a vida é mesmo feita desses gestos menores. Os grandes, os inaugurais, contam-se pelos dedos.”

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