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Literatura

Livros mostram que popularização do funk aumenta repressão e coloca bailes em risco

Lançado pela editora Lp Press, “Rio Baile Funk” capta instantâneos das festas, que não se organizam como um evento noturno qualquer

FolhaPress

17/08/2022 8h20

Lançado pela editora Lp Press, "Rio Baile Funk" capta instantâneos das festas, que não se organizam como um evento noturno qualquer

Foto: Reprodução

Há duas semanas, o fotógrafo francês Vincent Rosenblatt, de 49 anos, resolveu curtir o baile do Morro Santo Amaro, no Catete, na zona sul do Rio de Janeiro. A noite havia começado no Circo Voador, na Lapa, onde ele e um amigo se encontraram num show de funk, que reuniu sob a lona uma galera do asfalto. De lá, os dois rumaram a pé, às 4h da manhã, até a subida do morro, percorrendo uma distância de dois quilômetros.

No baile do Santo Amaro, Rosenblatt constatou as diferenças entre os dois espaços urbanos. Para ele, tudo soa singular na favela. Os paredões de som asseguram os graves do ritmo e, no escuro, os corpos em comunhão traçam silhuetas, respondendo em coreografias aos apelos do funk.

Naquela madrugada, Rosenblatt havia subido o morro com o objetivo de entregar um exemplar do seu livro “Rio Baile Funk” ao DJ Mandrake, que tanto o ajudou nos últimos 17 anos. Nesse período, o fotógrafo registrou mais de 400 bailes, em diferentes regiões da cidade, sendo acolhido por funkeiros, que apreciavam o trabalho do amigo “Vicente”.

Lançado pela editora Lp Press, “Rio Baile Funk” capta instantâneos das festas, que não se organizam como um evento noturno qualquer. Os bailes funcionam como experiências estéticas, em que o público partilha de códigos às vezes restritos àquele círculo social.

“O funk é o manual de sobrevivência da comunidade”, ele diz, entre baforadas de cigarro, num café no centro de São Paulo. “O funk ensina, porque ali está o código de ética da favela, em que todos podem saber como respeitar um amigo ou não ser um X9.”

Rosenblatt se encantou com a ideia de catarse presente nos bailes -a liberação de emoções, reações e desejos reprimidos de seus frequentadores. Com uma lente grande angular e um flash na mão, ele ilumina espaços obumbrados, revelando cenas de carinho, tesão e alegria nas franjas da sociedade.

Nesse sentido, subverte o estigma que, desde os anos 1990, paira sobre os bailes, aglomerações que seriam violentas, dominadas pelo tráfico e com alto consumo de drogas. Rosenblatt não nega os problemas sociais da favela, mas desloca o olhar para os momentos em que boa parte dos jovens da periferia encontram lazer, no lugar de miséria e violência.

“O baile é um espelho deformador, porque devolve aos moradores do asfalto seus medos sobre essas pessoas da favela”, ele afirma. “O funk responde com desejo de vida às pessoas que ainda querem jogar bombas e destruir as favelas, num claro desejo de morte aos mais pobres.”

Nascido em Paris, Rosenblatt estudou na Escola de Belas Artes e, no início da carreira, fotografou peças de teatro na capital francesa. Ele chegou ao Brasil no fim da década de 1990, aterrissando, em um primeiro momento, em São Paulo, onde fez alguns cursos na Fundação Álvares Penteado, a Faap.

Foto: Reprodução

Seus colegas, que chegavam de carrões, faziam questão de dar algumas dicas ao intercambista. Nos corredores, ele ouvia instruções para não sofrer um sequestro relâmpago ou não ser assaltado pela empregada doméstica. Em 2002, ele chegou ao Rio de Janeiro, fixando endereço em Santa Teresa. Ali, se encantou pelo funk, que ouvia nas favelas vizinhas, e instalou uma escola de fotografia para jovens da região. “Demorei para lançar o livro, porque os curadores tinham preconceito com o tema e o fato de eu ser francês. Mas quem legitima o meu trabalho são os próprios cidadãos da favela, que são retratados.”

Nas fotos, as pessoas parecem em transe, excitadas pelo ritmo renitente das caixas de som. Um exemplo é a menina que mal consegue abrir o olho, numa foto tirada em 2006, na cidade de Nova Iguaçu, durante o “Baile do Furacão Tsunami”. Com o corpo ensopado de suor e uma argola pendurada em cada orelha, a garota esboça um sorriso, como se admitisse o prazer de estar no baile.

Nesse transe, os homens aparecem quase sempre descamisados e requebrando os quadris. Quatro homens suados se abraçam, formando um muro de músculos no meio da festa. As cuecas brancas saltam à imagem, e uma delas carrega um celular de flip na cintura.

A imagem mais picante é protagonizada por Mr. Catra, amigo do fotógrafo que morreu em 2018. Rosenblatt era convocado para acompanhá-lo, seja em reuniões de família, onde tirava fotos do funkeiro com os 32 filhos, ou em incursões pelos inferninhos do Recreio dos Bandeirantes, de onde surgiu a foto incluída no livro.

Nela, a mão de Catra aparece em close, pousada entre as pernas de uma das garotas de programa. Em um dos dedos, o funkeiro, convertido ao judaísmo, ostentava um anel com a Estrela de Davi. “Elas faziam fila para tirar foto com ele”, lembra Rosenblatt.

O fotógrafo acompanhou as transformações do funk ao longo do tempo. Hoje, ele conta, há bailes em que o público se acomoda em mesas, esperando o serviço de um batalhão de garçons. Ao mesmo tempo, o avanço das causas identitárias agregou ao baile um significado político antes desconhecido, sendo hoje uma celebração da cultura negra. Rosenblatt, no entanto, alerta que os bailes tal como se popularizaram estão quase desaparecendo no Rio de Janeiro.

O pesquisador Danilo Cymrot, de 36 anos, elenca algumas razões para a diminuição do número de bailes. Seu livro “O Funk na Batida”, agora lançado pelas Edições Sesc, mostra sobretudo a história de repressão contra o gênero desde os anos 1990. Para ele, a situação é pior no Rio de Janeiro, dado que a política de pacificação das favelas culminou, a partir de 2008, na ocupação de espaços antes destinados ao lazer dos jovens.

“As UPPs interpretaram a existência dos bailes como um resquício da ordem anterior, quando o morro era dominado pelo traficante armado”, explica Cymrot. “Só que a pacificação só se preocupou com o tráfico, enquanto as milícias continuaram a atuar na zona oeste.”

Em São Paulo, há repressão, mas, com a crise econômica de 2014, as festas migraram para as ruas, atraindo um público cada vez maior. Nas duas cidades, porém, o debate sobre o funk se tornou candente e logo motivou projetos de lei, em diferentes esferas políticas.

De modo análogo, as prefeituras adotaram políticas públicas, tentando regulamentar o funk como manifestação da cultura popular. Para se ater a São Paulo, a gestão de Fernando Haddad, do PT, tentou se aproximar dos funkeiros, em 2013, quando se reuniu com integrantes do projeto Território Funk. O secretário municipal da Promoção da Igualdade Racial, Toninho Pinto, chegou a dividir a cidade em 11 regiões para a realização das festas. A medida era implementada dias após o assassinato de MC Daleste.

Mas Haddad seria acusado de tentar “domesticar” o funk, além de não ter contribuído para o fim da repressão ao gênero. Seis anos depois, alguns dias após a morte de nove jovens numa operação policial no Baile da DZ7, em Paraisópolis, a gestão do prefeito Bruno Covas, do PSDB, também tentou se aproximar dos funkeiros, promovendo o Festival Funk da Hora, no Centro Formação Cultural Cidade Tiradentes. “Acho que esse é o único caminho possível. Apesar dos problemas, se o Estado não intervém, o conflito social pode escalar”, pondera Cymrot.

Adotando uma perspectiva histórica, “O Funk Na Batida” atualiza o debate sobre o tema, deixando um paradoxo no ar. Se os bailes se enfraqueceram, o funk nunca esteve tão em alta. Nas carreiras de cantoras como Pabllo Vittar ou Ludmilla, o gênero se mostra adequado à realidade da indústria, alinhado à estética do pop americano.

Foto: Reprodução

Para Cymrot, o funk foi validado pela elite cultural, num processo que começa ainda nos anos 1990. De acordo com o livro, a vertente melody, que revelou a dupla Claudinho & Buchecha nos palcos da Xuxa, conseguiu se moldar ao gosto das classes médias, com suas letras ingênuas. Na mídia, o funk sedimentou seu território, se unindo a figuras tradicionais da música popular. Em 2005, por exemplo, Mc Leozinho entoou “Se Ela Dança, Eu Danço”, num dueto com Roberto Carlos, no especial de fim de ano.

Mas a virada se daria quando os mais ricos perceberam que seus filhos subiam o morro para se divertir. Na guerra entre tigrões e tchutchucas, ninguém quer ser mocinho. Assim, os playboys passaram a imitar os jovens da favela, percebendo que poderiam tirar vantagem, adotando um comportamento transgressor aos padrões das escolas privadas.

“Rio Baile Funk” e “O Funk Na Batida” mostram, afinal, que o bonde -reunião de galeras que saem às ruas da cidade-ainda é um corpo estranho na malha urbana das cidades brasileiras. “Hoje a periferia tem acesso a outras produções culturais, sem passar pela grande mídia”, pontua Cymrot. “O funk incomoda, e não é pelo barulho que atrapalha a vizinhança.”

Rio Baile Funk

Preço: R$ 170,00 (200 pags.)

Autor: Vincent Rosenblatt

Editora: Lp Press

O Funk Na Batida

Preço: R$ 85,00

Autor: Danilo Cymrot

Editora: Edições Sesc

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