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Folhetim "Outro Lugar na Solidão"

Começar de novo?

Folhetim: Outro Lugar na Solidão – Capitulo 2

Redação Jornal de Brasília

23/06/2020 10h08

Por: Marcos Linhares, Adriana Kortland e Marcelo Capucci

– Olá! Como estão as coisas? Ajeitando o estetoscópio, se autocensura: Não… Muito informal…

– Bom dia, Giacomo. Li seu artigo no jornal. Excelente! Gostaria de trocar algumas ideias…

Nonata, você jura que está louca para discutir detalhes do RNA do vírus com ele? Pensa que ele nasceu ontem? Conversando consigo mesma apagou tudo, conferiu o horário da próxima reunião, viu que ainda tinha uns quinze minutinhos:

– Olá, Giacomo. Andei pensando em… Humm… que coisa enrustida… Meu Deus!!! Pareço uma adolescente!

– Normal, Nonata. A gente é assim quando se apaixona, mesmo nessa idade! Lembra quando conheci a Júlia? Fiquei, como você agora… Vamos indo? A reunião promete! … Acho melhor ir de escada e evitar o elevador, disse o colega médico à entrada da porta.

– Ah, Murilo… você estava aí? Que paixão que nada, eu só… disse Nonata, levantando-se, enfiando papéis na bolsa, desligando o computador, trancando o armário e andando apressada em direção à porta do consultório, a cabeça meio baixa, para não encarar o amigo.

– Nô, fala sério, você vai tentar me enganar, depois de tudo que a gente já viveu, nas últimas… aff, nem quero fazer a conta das décadas. Você voltou diferente do congresso, não inventa! Qual o problema?

Os dois começaram a percorrer os meandros do hospital, com a destreza de quem conhece cada centímetro do edifício, desviando de macas, aqui e ali cumprimentando colegas, enfermeiras, pessoal da limpeza, enfim, intimidade completa. A passos firmes, subiram três lances de escada, enveredando-se por mais corredores.

– Sem devaneios, Murilo. Conheci muita gente legal em congressos, você também, é ótimo. Só que você insiste nessa coisa de me arrumar um marido.

– Alto lá!, quem falou em marido? Nô, já vai fazer 6 anos que o Sílvio morreu, qual o problema de namorar? Beijar na boca é bom demais, fora…

– Nem precisa continuar! Há menores no corredor. Interrompeu Nonata brincando.

– Só se você virou adolescente de novo. Contou quantas vezes olhou pro celular enquanto a gente anda? Tá bom… não falo mais nada! Disse Murilo, enquanto a amiga o encarava por cima dos óculos.

– Eu passei da idade. E depois, que o Sílvio me perdoe, ele foi um ótimo marido, mas, como é bom ter toda a liberdade do mundo, não ter que fazer compromissos o tempo todo!

Chegando perto da sala, o barulhinho do celular fez com que Nonata parasse. Sua expressão ao olhar a mensagem denotou quem era.

– Nô, faça uma coisa. Disse Murilo apontando para o banheiro feminino:

– Vai ali, que no corredor não tem privacidade, leia com calma a mensagem, eu digo que você foi chamada por um paciente, mas que já está chegando. Pode ir, ninguém vai morrer por causa disso, dona Caxias!

Nonata olhou sem graça para o amigo e correu para o banheiro, digitando a senha do celular:

– Dois minutos, disse ela, andando apressada, abrindo o whattsapp de Giacomo. Antes que pudesse alcançar a cabine do banheiro, a mensagem fez com que parasse de desapontamento.

– Olha isso! Era o conteúdo. Uma mãozinha em forma de seta apontava para um link anexado.

– Como assim, olha isso… É tudo o que o cara tem para me dizer? Sem abrir a mensagem, guardou o celular e, dando meia volta, foi em direção à porta, não sem antes ajeitar o cabelo e lavar as mãos:

– Tem uma pandemia me esperando. O Tsunami está chegando. Aposto que vão querer que eu transforme a UTI neonatal em UTI-Covid19. Falou para si mesma, correndo para a sala.

À noite, já em casa, esgotada, Nonata passou uma vista d’olhos na quantidade alucinante de emails, artigos científicos, mensagens profissionais e pessoais, todos aguardando resposta. – Realmente não é hora de solicitar a aposentadoria, pensou. A certeza de que vararia a noite estudando os boletins sobre a pandemia a incomodou um pouco e, mais ainda, a decisão da direção do hospital em utilizar o espaço da obstetrícia para os casos graves da covid. O que faria com os bebês prematuros?

– Por que não temos uma saúde pública de qualidade e para todos, em um país tão rico? Perguntou-se pela enésima vez, enquanto colocava água para ferver para mais uma noitada de espaguete ao pesto do supermercado da esquina. Giacomo não havia enviado mais nada. Nonata abriu o pacote com uma mordida irritada, e assumiu a razão de seu agastamento: desencanto. Ela estava decepcionada com o minimalismo da mensagem do médico que lhe havia mirado com tanto brilho nos olhos, convidado para almoçar e tornado o enfadonho congresso de medicina em um evento delicioso. Foi como viajar com ele nas lindas histórias sobre o país de seu pai, a Itália. Aqueles dias reacenderam a vontade de viajar, rir, tomar vinho, enfim… sair do seu mundinho de casa—hospital—casa.

– Ele deve estar em casa, feliz da vida. Vai ver que é casado, e vai ser mais um desses que vão adorar entupir minha timeline com filminhos.

Abriu mesmo assim o link: “Funeral de meu irmão na sala de nossa Casa.” 3.2.1…: Olá, aos poucos que me conhecem. Eu, Oscar, faço esse vídeo para homenagear o meu irmão, Sancho. Ele pegou Covid-19… Esperando o tempo da massa, Nonata desviou o olhar da panela, rumo ao celular. Um homem de uns 30 anos, visivelmente adoentado, filmava dois caixões. O foco foi para um rapaz de uns 16 anos, deitado em um caixão cheio de livros, revistas. Trêmula, a câmera passou para o caixão ao lado, depois, para o interior de um barraco de madeira. Havia serragem por todo lado. Um serrote enferrujado, martelo e pregos. O ambiente, sombrio, era iluminado pela luz do dia que atravessa a porta e as janelas. – Meu irmão não conseguiu leito, continuava a narrativa.
– Boa noite, Giacomo. Que triste! O que é isso? Quem é ele?

Segundos depois, a resposta:

– É aqui na minha cidade. Fui encontrá-lo hoje. Ele se chama Oscar Lima. Passei o dia tentando arrumar vaga para ele. Acho que não vai aguentar. Diagnostiquei, mesmo sem teste, além dos sintomas de covid-19, asma. Não temos respiradouros, todos lotados. Gostaria de conversar contigo antes de voltar para a UTI. Tem tempo?

O mundo de Nonata parou:

– Ainda bem que não respondi hoje de manhã. Estaria escondida debaixo do sofá, de vergonha. Pensou ela, enquanto ligava para ele.

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