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Literatura

De Elza Soares a Alcione, ‘Canto de Rainhas’ faz bons perfis de sambistas

Pesquisador, jornalista e autor de outros cinco livros sobre samba, Leonardo Bruno narra no primeiro capítulo um encontro do quinteto de cantoras, espécie de mesa redonda de opiniões e debates

FolhaPress

03/03/2022 18h39

Foto|Reprodução

“Canto de Rainhas”, de Leonardo Bruno, é livro híbrido –ou “literatura de bordado”, para usar a feliz expressão da jornalista Flávia Oliveira no prefácio– ao reunir ensaio, reportagem, depoimento pessoal e até cenas de ficção para situar, na história do samba, cinco personagens de destaque: Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares, que o autor define como seu ABCDE afetivo.


O formato, além de inabitual, mostra-se arriscado. Pesquisador, jornalista e autor de outros cinco livros sobre samba, Leonardo Bruno narra no primeiro capítulo um encontro do quinteto de cantoras, espécie de mesa redonda de opiniões e debates.


O autor prende-se a detalhes. Alcione tem “longas unhas pintadas de verde e rosa”, o que a impede de abrir uma porta. Descreve as roupas que elas estavam usando: Clara Nunes “entra girando, balançando o vestido rendado e chacoalhando os balangandãs”; Elza Soares veste “saia com vários dedos acima dos joelhos”.


Só que tal reunião de bambas faladeiras jamais aconteceu. Baseia-se em frases e depoimentos que Alcione, Beth, Clara, Dona Ivone e Elza deram ao longo de suas carreiras. Como abertura para capturar o leitor, funciona, mas soa estranho.


Há uma mudança de rumo no capítulo seguinte, quase um ensaio acadêmico, intitulado “Música: Substantivo Feminino”, que revela o objetivo concreto da obra: investigar as relações entre as artistas mulheres e o samba, apontando o que nelas existiu, e continua a existir, de racismo e machismo estruturais.


Percorre de Chiquinha Gonzaga -representada como branca sem o ser-, passando pelas tias baianas da praça Onze –até hoje à espera do devido crédito como instrumentistas– e ressaltando a trajetória de Marília Batista, exímia violonista tanto clássica como popular e que, antes de ser tornar a “cantora preferida de Noel Rosa” e a “Princesinha do Samba”, já era uma talentosa compositora. Situação comum à época, Marília, ao se casar com um médico em 1945, abandonou a carreira.


“A mulher era uma espécie de ventríloqua”, acredita Leonardo Bruno, que lista um chorrilho de sambas com letras machistas e, mesmo assim, interpretados por cantoras. “Elas eram metaforicamente emudecidas, na medida em que não podiam expressar suas ideias através das letras. A ordem estabelecida era clara: a mulher até podia falar, desde que fossem palavras escritas por um homem”.


Antes de apresentar os perfis biográficos das cantoras eleitas –todas ligadas ao samba, mas que curiosamente não se definiam como sambistas, à exceção de Ivone Lara–, o autor defende mais uma tese: o ambiente machista em que elas foram criadas e as experiências por que passaram na infância e na adolescência tiveram reflexos, positivos e negativos, em suas trajetórias.


A vida mais dramática de todas é a de Elza Soares, que por pouco não foi estuprada aos 12 anos e, aos 20, morava na favela e tinha quatro filhos para dar de comer. Mas a de Dona Ivone não é menos exemplar: ela só pôde se dedicar a gravar profissionalmente depois de 37 anos trabalhando como enfermeira e assistente social. Alcione e Clara passaram por situações parecidas. De classe média, Beth teve melhor sorte, sem deixar de enfrentar preconceitos.


Além dos perfis, a parte mais substanciosa e bem realizada do livro, um capítulo é dedicado a cantoras do passado –Aracy de Almeida, Clementina de Jesus, Elizeth Cardoso, Nara Leão. Outro aborda nomes do presente: Teresa Cristina, Roberta Sá, Fabiana Cozza.


Em tempo: este resenhista considera que Jovelina Pérola Negra –que tem tudo a ver com a proposta da obra– deveria ter ganhado mais espaço. Ou até mesmo ser a letra J bagunçando o ABCDE.

CANTO DE RAINHAS
Preço: R$ 89,90 (416 págs.)
Autor: Leonardo Bruno
Editora: Agir
Avaliação: Muito bom

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