“A cultura não é um simples setor. Ela é uma força vital que atravessa todos os setores da vida. Cultura é um exercício de transformar o viver em sentido e o sentido em beleza. Talvez seja exatamente por isso que, quando cuidamos a cultura, cuidamos da própria alma do lugar”. A afirmação forte e repleta de sensibilidade vem de Uillian Santiago, fundador da empresa de fomento cultural Cultura das Gerais, mestre e especialista em Gestão Cultural, Cinema, Transformação Digital e Administração Pública. Com mais de 12 anos de experiência, destaca-se pela atuação estratégica na preservação do patrimônio cultural, elaboração de projetos, palestras e gestão de políticas públicas. Membro do ICOMOS Brasil e do Comitê Gestor do Sistema Estadual de Museus de Minas Gerais, liderou diversas iniciativas premiadas, além de produzir festivais, eventos e documentários que valorizam a memória e a identidade cultural brasileira. Sua trajetória combina gestão, inovação e um forte compromisso com a cultura e o desenvolvimento dos territórios onde atua. Confira nesta entrevista exclusiva um pouco sobre sua trajetória, bagagem e experiência que o tornam um visionário cultural, capaz de ver cultura onde normalmente ninguém vê:
Poderia partilhar conosco os principais pontos da sua história de vida? Como acha que essa trajetória contribui para que você tenha se tornado um visionário cultural, que vê cultura onde normalmente as pessoas não veem?
Nasci em Pouso Alegre/MG, mas foi em Careaçu, no sul de Minas, que aprendi a ouvir o mundo. Minha casa era o palco das congadas, folia de reis, onde o som dos tambores e das caixas se misturava às orações e ao sorriso do povo. Cresci nesse ambiente, onde a fé, a música e a comunidade formavam uma só melodia. Meu pai tocava na folia de reis, ajudava na congada, e minha mãe, com seu jeito simples e firme, me ensinava que a vida só vale quando a gente faz o bem. Venho de uma família humilde, mas profundamente rica em valores, com muito respeito, solidariedade, trabalho e amor pelas pessoas. Desde pequeno, sempre gostei de observar o movimento da vida, os festejos populares, as procissões, os gestos das pessoas. Também desenhava, escrevia, inventava histórias. Depois, encontrei na música uma forma de expressar tudo isso. Tocava violão nas igrejas, na missa, no grupo de jovens. Descobri que a arte é uma linguagem capaz de aproximar os mundos. Mais tarde, busquei compreender a cultura pelo estudo. Fiz conservatório durante um longo período. Depois do ensino médio fiz Filosofia, mestrado em Ciências da Linguagem, especialização em Gestão Cultural, sou pós-graduado em Cinema, fiz MBA em Transformação Digital pela USP e ainda continuo estudando. Essa formação universitária me ajudou a unir o saber popular com a bagagem acadêmica, compreendendo a cultura como essa engrenagem viva que molda o desenvolvimento humano. Acredito que foi essa mistura dos tambores, dos livros, da sensibilidade, da técnica que me tornou esse visionário cultural. Porque ver cultura onde ninguém vê é, antes de tudo, reconhecer o invisível, perceber beleza nas ruas simples, sabedoria nas mãos calejadas e arte nas pequenas resistências do cotidiano. Aprendi que cada pessoa carrega uma história. Que cada cidade guarda um símbolo. E que, quando olhamos com atenção, a cultura revela o que há de mais humano em nós: a capacidade de criar sentido, mesmo nos silêncios.

Como surgiu a empresa Cultura das Gerais? Qual a missão/objetivos? O que ela faz pontualmente?
A empresa nasceu da minha trajetória como gestor público. Foram 12 anos à frente da Secretaria de Cultura de São Sebastião da Bela Vista/MG, tempo em que eu compreendi, na prática, que a cultura é capaz de transformar uma cidade, despertando pertencimento, autoestima, identidade. Fizemos um conjunto de iniciativas que nos levou ao primeiro lugar em 2022 e à menção honrosa em 2024, no prêmio estadual de boas práticas no eixo cultura, promovido pela Associação Mineira de Municípios. São reconhecimentos que simbolizam o poder de uma gestão feita com propósito. Foi dessa experiência e de tantas outras que surgiu a Cultura das Gerais, um espaço que une técnica, sensibilidade e planejamento. Mais do que uma empresa de consultoria, somos um laboratório criativo de projetos e formações, que conecta cultura, território e pessoas. Atualmente estamos atuando com prefeituras no sul de Minas, apoiando a implantação de sistemas municipais de cultura, gestão de conselhos, fundos, ICMS patrimônio cultural, as políticas federais, além de promover eventos, exposições, ações educativas e produções audiovisuais que ressignificam a memória local de cada município onde atuamos. Dentre as produções audiovisuais, gostaria de destacar o Documentário Sanctus, um filme sobre a semana santa que será lançado em fevereiro de 2026 e está sendo produzido há três anos. Então, a Cultura das Gerais é, antes de tudo, um projeto de vida. E a cultura não é um simples setor. Ela é uma força vital que atravessa todos os setores da vida. Cultura é um exercício de transformar o viver em sentido e o sentido em beleza. Talvez seja exatamente por isso que, quando cuidamos a cultura, cuidamos da própria alma do lugar.

O que faz um facilitador de apoio cultural? Qual sua opinião sobre a forma como são construídos os projetos para arrecadação de verbas de incentivo à cultura hoje no Brasil?
O facilitador de apoio cultural é quem constrói pontes entre a arte e a gestão. É aquele que compreende a sensibilidade do artista e também domina as leis, os editais e as políticas públicas. É um tradutor de mundos, transformando ideias em projetos, sonhos em ações possíveis. No meu trabalho procuro orientar prefeituras, artistas, instituições a entenderem que a cultura não nasce da planilha, mas do propósito de transformação que a inspira. Vejo com preocupação quando a política cultural se reduz apenas à busca por editais e relatórios. O verdadeiro valor de um projeto não está apenas nos números, mas nas mudanças simbólicas e humanas que ele provoca. O facilitador cultural existe para preservar essa essência; para que a arte não se torne produto, mas permaneça como experiência de sentido. Costumo dizer que o papel do gestor não é apenas preencher planilhas, mas preencher vazios de pertencimento, de beleza, de humanidade. Captar recurso é importante, com certeza. Mas o maior desafio é transformá-los em permanência. Porque uma sociedade não se torna mais culta quando faz mais eventos, como acontece na grande maioria dos municípios; mas sim quando ela aprende a olhar, a sentir e a escutar melhor a si mesma.
Qual a importância, para você, de ser membro do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios)? Quais os critérios para que um bem cultural seja considerado patrimônio?
Ser membro do ICOMOS Brasil é uma honra e uma responsabilidade. Levo comigo a convicção de que o patrimônio cultural é muito mais do que pedra e arquitetura. É memória, afeto, pertencimento, identidade. Fui indicado para o ICOMOS em reconhecimento à minha trajetória na gestão pública e na preservação do patrimônio cultural construída com base na minha visão humanista e comunitária. O ICOMOS é um órgão consultivo da Unesco onde os membros do mundo inteiro refletem sobre a memória da humanidade. Estar ali me permite representar Minas Gerais e o Brasil, mostrando que o valor de um bem não está apenas na sua forma, mas na vida que ele abriga. Acredito que não existe o patrimônio cultural sem o pertencimento. Antes dele ser reconhecido como patrimônio da humanidade, precisa ser reconhecido pelo seu próprio povo. Preservar é dar novo sentido ao passado, escutar o tempo com respeito e transformar memória em presença. Patrimônio cultural, afinal, é o espelho simbólico onde uma comunidade se conhece e se reencontra.

Você considera que o Brasil tem um trabalho interessante/relevante de valorização e preservação do seu patrimônio cultural?
O Brasil possui um trabalho relevante de valorização e preservação do seu patrimônio cultural, com um ecossistema institucional sólido e, quando articulado, exemplar. O Brasil tem uma das arquiteturas mais completas de proteção do patrimônio, além de possuir inúmeras manifestações culturais e celebrações. Portanto, é preciso investir mais em formação, continuidade e integração. O patrimônio cultural não é uma vitrine. É um vínculo entre memória e futuro, é um território simbólico onde a identidade se renova e a sociedade se reconhece.
Qual a importância do patrimônio cultural de um local como elemento de formação, pertencimento e valorização da história coletiva de um povo?
O patrimônio cultural é o fio que costura a memória e o pertencimento coletivo. E é nele que se enraíza a noção de comunidade. Como nos lembra Darci Ribeiro: nós somos um povo formado de muitos brasis e o patrimônio é o espelho dessa pluralidade. Ele assegura a continuidade de tudo o que promove sustento. Ao mesmo tempo, ele nos obriga a repensar quem somos e o que queremos perpetuar. No meu olhar, já amadurecido por anos de trabalho, vejo que o patrimônio é menos uma coleção de pedras e documentos e mais uma pedagogia do encontro, porque ele ensina a olhar o território, a ouvir os mais velhos, a compreender o ritmo do lugar. É um exercício de autoconhecimento coletivo. Em síntese: o patrimônio cultural é um instrumento de futuro, quando o povo reconhece em sua história uma força criadora, deixando de ser espectador para se tornar protagonista. Nesse sentido, acredito que ver cultura onde ninguém vê é, na verdade, ver gente, ver sentido, ver pertencimento. Isso é o que move toda a ação cultural.
Pode nos adiantar alguns aspectos do livro que você irá lançar no ano que vem?
Esse livro nasce de uma inquietação antiga: o que realmente estamos chamando de cultura e o que resta dela quando é reduzida a produto, evento ou entretenimento. Considero um ensaio filosófico, reflexivo, sobre o papel civilizatório da cultura e a urgência de reencontrar o belo como dimensão formativa e ética da vida pública. Escrevo a partir da minha própria travessia: das ruas do sul de Minas onde vivi desde criança, aos espaços de conselhos, museus e políticas culturais onde atuo hoje. O livro nasce desse diálogo entre o popular e o erudito; o ofício e o pensamento, buscando compreender a cultura não como setor, mas como modo de existir e de perceber o mundo. Nessa obra eu critico a lógica da pressa, que transforma a arte em mercadoria e o artista em fornecedor, e proponho uma política do belo; não o belo da aparência, mas o da lucidez, aquele que educa o olhar e refina o espírito. É como escrevo em um dos trechos: “a cultura é o espaço onde o homem deixa de repetir o mundo e começa a recriá-lo”. O livro é, em essência, esse convite à contemplação e à consciência, à compreender a cultura como o que de mais humano um ser humano produz.