Leonardo Sanchez
Cannes, França
É um tanto estranho olhar para a ficha técnica de “Boy from Heaven”, que venceu o prêmio de roteiro no último Festival de Cannes. Por mais profundo que seja o mergulho do filme no mundo árabe e nas especificidades do Egito islâmico, entre os quatro países que o produzem não há nenhum da região.
Fruto de parceria entre Suécia, França, Finlândia e Dinamarca, o longa-metragem tem um diretor filho de egípcio, Tarik Saleh, mas jamais poderia ter sido feito no país, segundo ele próprio. “Boy from Heaven”, ou garoto do paraíso, afinal, arranha temas delicados, como a corrupção do governo local e o falso moralismo do alto escalão do Islã.
“As proibições locais são uma questão política, e não religiosa, ao contrário do que pensam. E este filme nem é tão controverso quanto pode parecer, mas é simplesmente impossível fazer algo com carga política em países como o Egito”, disse Saleh durante o festival francês, do terraço de um prédio de onde se via a arquitetura charmosa e a costa azulada da riviera francesa.
É também do alto de um prédio que o público testemunha o assassinato de um personagem de “Boy from Heaven”, escancarando a violência da história que se desenrola.
Com exibições na Mostra de Cinema de São Paulo, o longa acompanha os dias que seguem a morte do grande imã da mesquita de Al-Azhar e reitor da universidade de mesmo nome -cargo máximo do mundo muçulmano sunita, algo que equivaleria à figura do papa para os católicos.
A partir daí, uma disputa por poder se desenrola, com diferentes grupos tentando emplacar seus candidatos ao cargo. Para investigar os interesses escusos de um deles, um policial recruta um estudante da universidade de Al-Azhar para se infiltrar numa célula radical e com inclinações terroristas.
“Enquanto artista, estou disposto a passar de qualquer limite, embora não seja um provocador. Não vou insultar profetas, mas defendo o direito das pessoas que querem fazê-lo. Só quero contar histórias sem ser censurado”, diz Saleh.
“Boy from Heaven” denuncia tal aspecto de muitos governos árabes e, justamente por isso, precisou ser gravado na Turquia, longe da Al-Azhar de verdade. Seu elenco, também para driblar retaliações, foi formado por atores de outros países e egípcios que já não moram mais em casa.
Para além de direcionar críticas à sua porção árabe, no entanto, o cineasta sueco também dedica algumas ao seu lado europeu e ocidental. Ele acredita ser um absurdo, por exemplo, o desconhecimento da maior parte das pessoas que não são muçulmanas da figura do grande imã e de Al-Azhar, equivalentes ao papa e ao Vaticano. Se você não os conhece, é sem cultura e desinformado, diz o diretor.
Por isso, buscando uma maneira de tornar o universo no qual “Boy from Heaven” se desenrola mais acessível, Salek se ancorou no cinema de gênero. Fez de seu roteiro um thriller político com vários elementos que remetem a Hollywood, mesmo com todas as especificidades da trama.
É como se o filme fosse uma versão árabe de “007” ou “Missão Impossível”, e não deixa de ser curioso adentrar o universo policial e da espionagem por uma ótica que rompe com a cartilha ocidental do gênero.
Não que Salek não tenha buscado referências estrangeiras -ele cita os longas “A Batalha de Argel”, “O Poderoso Chefão 2” e “Chinatown” e o autor John le Carré-, mas viu em “Boy from Heaven” uma oportunidade de ressignificar a maneira como o mundo árabe é visto nos círculos culturais e, em especial, num gênero que está sempre em busca de uma ameaça aos patriotas americanos.
“Sei que as pessoas odeiam muçulmanos, e sei disso porque sou um muçulmano que cresceu na Europa. As pessoas no Ocidente foram treinadas para isso, por filmes, notícias e propaganda”, afirma. “É estranho, porque o islã está no noticiário todos os dias, há uma obsessão, mas as pessoas não se informam de verdade.”
“Ao menos com o Putin os russos se tornaram os vilões novamente. Tenho que agradecer a ele porque os muçulmanos vão ter um intervalo sendo os caras maus”, completa aos risos, em meio a um Festival de Cannes marcado pelas críticas à guerra na Ucrânia e com um clima fraternal que a Europa Ocidental não costuma estender a qualquer um.
BOY FROM HEAVEN
Quando Exibido na Mostra de SP nesta terça (25), às 14h, no Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca, na segunda (31), às 18h50, no Cinesesc, e em 1º/11, às 19h, na Cinemateca
Classificação 14 anos
Elenco Tawfeek Barhom, Fares Fares e Mohammad Bakri
Produção Suécia, França, Finlândia, Dinamarca, 2022
Direção Tarik Saleh