BRUNO GHETTI
(FOLHAPRESS)
Filmes com personagens com doença incurável não têm muito segredo: é certo que, em algum nível, conseguirão a empatia do espectador. O problema é que o cinema já abordou essa situação humana tantas vezes, e de maneiras tão sensacionalistas, que o público, com o tempo, passou a ter um pé atrás com obras do tipo. Acabou ficando receoso, e exausto, de se sentir tão emocionalmente explorado.
É muito difícil falar de pessoas que não podem ter grandes perspectivas de futuro sem tatear zonas afetivas muito delicadas do espectador. Então, apesar de esses filmes falarem ao público com força em termos de imediatez, muitas vezes o que permanece em quem assistiu é a sensação de ter sido manipulado, muito mais do que o drama do personagem em si.
“Todo Tempo que Temos” tem uma personagem que sabe que não viverá por muito tempo, mas é um filme que notadamente procura evitar cair nas armadilhas mais óbvias. Evidentemente, o longa falha em muitos momentos, mas no geral preserva alguma dignidade -tanto da protagonista quanto do projeto como um todo.
É a história de Almut, vivida por Florence Pugh, uma chef de cozinha cheia de vivacidade que se apaixona por um executivo gentil, mas meio desbotado, Tobias, interpretado por Andrew Garfield. Ela um dia descobre que um câncer que julgava superado voltou, desta vez mais agressivo e sem praticamente lhe dar chances de sobrevivência. O casal precisa se adaptar à nova rotina, embora percalços variados atrapalhem o convívio.
Parece até uma história romântica banal -e de fato é, em essência-, mas o diretor, John Crowley, procura narrar a trama de modo menos corriqueiro.
Faz uso, por exemplo, de idas e vindas temporais, no começo obtendo resultados bastante satisfatórios, porque existe sempre alguma pequena surpresa ao espectador nas cenas em que a história do casal é apresentada.
Os cortes são muito bem efetuados e espertamente escolhidos, então o filme tem um sabor especial de constante descoberta em sua metade inicial. Mas acabamos nos acostumando com a fórmula, e de repente tudo começa a ter menos relevância do que o lado lúdico de tentar adivinhar qual vai ser o próximo espavento que o roteiro vai nos propiciar.
Propositalmente ou não, o repertório de firulas da narrativa logo assume seu esgotamento, e quando o filme deixa de depender tanto das mudanças temporais e passa a ficar mais fixo em tempos determinados, inicialmente dá a impressão de que a coisa toda vai eclodir na mesmice das comédias românticas habituais. Existe um princípio de decepção, ali.
Felizmente, a esse ponto, a situação dramática envolvendo Almut e Tobias já tinha conseguido uma força própria, então a convencionalidade que o filme passa a ter é recebida sem maiores traumas, e finalmente os temas de fundo do longa acabam surgindo, naturalmente.
Crowley é mais conhecido por seu trabalho nos palcos britânicos, e aqui ele mostra que a direção de atores continua sendo o seu forte. Consegue resultados excelentes, se levarmos em conta que a escalação do elenco não tinha muito para funcionar.
Pugh é uma das melhores atrizes de sua geração. Mas ela tem uma face que, mesmo relaxada, parece dura, impaciente demais -dá a impressão de que vai vociferar xingamentos a qualquer instante. Não é a atriz ideal -ou, ao menos, a arquetípica- para comédias românticas.
E como Garfield, opostamente, é em geral um ator cujo rosto sugere quase sempre uma pessoa dócil, passiva -por vezes até meio abobada-, nas cenas em que contracenam, Pugh não deixa muita escolha ao parceiro que não seja o que ele faz em termos de “atuação” ao longo de todo o filme: lacrimejar.
O personagem de Garfield quase inexiste; é basicamente um depósito para os sobressaltos da esposa. Mas curiosamente há alguma química ali, entre eles -embora não tanta. Mas o suficiente para não prestarmos muita atenção a algumas idiotices identitárias do roteiro, como a desnecessária indicação de que Almut é bissexual.
Porque isso aparece no filme de maneira estabanada -surge de forma tão antinatural que parece ser um salvo-conduto para a personagem poder ter certas posições talvez “assertivas” demais para uma mulher hétero. Ou, pior ainda: para chancelar o desejo de Almut de nunca ter filhos.
Nessas pequenas mas importantes inabilidades, o filme perde a capacidade que tinha para discutir questões mais centrais com relevância. E de se distinguir para além das estripulias temporais momentaneamente prazerosas, mas esquecíveis em não muito longo prazo.
TODO TEMPO QUE TEMOS
– Avaliação Bom
– Classificação 14 anos
– Elenco Andrew Garfield, Florence Pugh e Marama Corlett
– Produção Estados Unidos, 2024
– Direção John Crowley
– Onde assistir Nos cinemas