A 21ª edição do reality show Big Brother Brasil, veiculada pela TV Globo desde 25 de janeiro, vem provocando debates acalorados a respeito de temas espinhosos. Embora esteja no ar há pouco menos de três semanas, o programa já registrou acusações de homofobia, racismo, bifobia, intolerância religiosa, xenofobia e até de tortura psicológica – as buscas pelo termo na internet dispararam 610% entre janeiro e fevereiro, chegando ao maior patamar da série histórica de registros do Google, desde 2004.
Após casos potencialmente tão graves serem registrados ao vivo e transmitidos para milhões de espectadores de maneira completamente acrítica, as reações do público variaram entre a aprovação e a reprovação de perpetradores e vítimas. Um dos mais notórios embates na casa, por exemplo, foi a acusação de tortura psicológica da cantora Karol Conká contra o ator Lucas Penteado. Lucas anunciou sua desistência de participação no programa no domingo, 7, após duas situações que levaram ao ápice a tensão na casa: seu beijo em Gilberto e sua confissão de ser bissexual.
De acordo com Daniel Martins de Barros, psiquiatra e professor do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a tortura psicológica consiste em “imposição de um sofrimento em alguém de maneira que a pessoa não consiga resistir”. Esse sofrimento pode ser “tristeza, dor, frustração, raiva”, explica o especialista, e a incapacidade de reagir não precisa ser uma condição objetiva. “Por exemplo, uma criança sofrendo bullying na escola poderia contar aos pais, falar com o professor, mudar de escola, mas ela se vê incapaz de reagir.” No caso de um reality show em que os participantes são observados por milhões de pessoas 24 horas por dia, essa vulnerabilidade pode, de acordo com Barros, provocar essa sensação de incapacidade de reagir.
Para o psiquiatra, as atitudes registradas entre os participantes do BBB, sendo ou não consideradas ofensivas, têm consequência por estarem sendo transmitidas para tantos espectadores sem uma mediação. “O risco que a gente corre quando veiculamos esse tipo de situação é, de alguma maneira, validar esse comportamento e mostrar que ele é um recurso presente que pode ser utilizado. O outro lado da situação é: existe um benefício de se veicular isso, que é justamente provocar reação e indignação àquele sofrimento que os espectadores estão vendo. Não sei dizer cientificamente qual vai ser o resultado disso na prática na sociedade.”
Em termos de impacto imediato na imagem dos envolvidos, a discussão parece estar surtindo algum efeito: Karol, que tinha 1,7 milhão de seguidores em seu Instagram antes de entrar para o programa, viu esse número cair em cerca de 400 mil, enquanto seu algoz Lucas já soma 8 milhões de seguidores mesmo após deixar a casa do BBB.
Uma das principais questões levantadas pelas redes sociais nos últimos anos é a chamada cultura do cancelamento, que consiste na rejeição generalizada de uma personalidade que comete qualquer tipo de conduta que se desvie de um padrão de comportamento tido como politicamente correto. Essa postura, identificada com o campo progressista, acabou se tornando uma das pautas da atual edição do reality show, personificada em participantes que, mesmo defendendo causas identitárias, acabam por excluir ou desprezar seus colegas, o que é um contrassenso.
“Para muita gente que não acompanha tão de perto os movimentos sociais, é a primeira vez que o grande público vê um tipo de fissura na ideia de esquerda unificada”, afirma o filósofo e escritor Henry Bugalho, dono de um canal de YouTube em que comenta os principais temas políticos do momento e em cujos vídeos tenta partir de temáticas mais populares ou midiáticas para alcançar questões filosóficas. “Não há uma esquerda monolítica, há diferentes grupos, e cada um quer priorizar a sua pauta. Se para muitos essa é a primeira vez que estão vendo esse lado combativo da militância, isso já acontece em diversos espaços, como as redes sociais ou as universidades”, acrescenta ele.
Bugalho acredita que a dinâmica da atual edição do BBB “tem o poder de contaminação da percepção da esquerda como um bloco monolítico” para o espectador médio. No entanto, ele afirma perceber “um certo esforço de ‘tirar o corpo fora’ por parte da militância”. Ou seja, quem pratica esse comportamento paradoxal, de excluir o diferente mesmo defendendo pautas progressistas, negando se identificar com o que o programa exibe.
“De um lado, o público vai associar esse comportamento à militância; de outro, a militância não se reconhece nesse comportamento”, constata o filósofo. Para ele, é fascinante acompanhar uma postura vista há algum tempo nas redes sociais ser replicada em discussões travadas pessoalmente no reality show. “As redes sociais apenas potencializam esse tipo de atrito Sabemos que as redes são basicamente espaços de confronto. Quando você está com raiva, inflamado, você clica mais, interage mais, xinga mais.”
Bugalho, que já morou em diversos países, ainda compara o BBB às produções similares em outros lugares. “No Big Brother dos Estados Unidos, por exemplo, costuma ganhar quem joga de maneira desleal. Eles entendem que é um jogo de xadrez e quem manipula melhor a situação ganha. No Brasil, há uma questão puritana do patinho feio, de torcer por quem foi excluído, uma predileção por quem é isolado.”
O interesse desmesurado na intimidade alheia, porém, não surgiu com reality shows como o Big Brother. O historiador Elias Thomé Saliba, pesquisador do humor na história e professor da USP, lembra que mesmo antes do advento da televisão e até mesmo do rádio o Brasil teve muitos jornais irreverentes. No entanto, ele ressalva: nem a mais escabrosa publicação chegava ao nível de exposição privada do BBB.
“O semanário O Rio Nu, que circulou por um longo período, entre 1898 e 1916, no Rio de Janeiro, foi um bom exemplo da imprensa de teor humorístico e erótico que tinha grande popularidade, sobretudo porque sua circulação ajudou a criar uma cultura visual em estreita conexão com os lugares públicos de diversão noturna, como os cafés, concertos, parques de diversões, cinematógrafos, teatros e diversões de rua, astros no Rio de Janeiro da Belle Époque. Era uma publicação com fotos de nus, charges maliciosas e picantes, com muito machismo, racismo e xenofobia – e alguma maledicência (termo da época), mas longe de expor vidas privadas.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.