Menu
Economia

‘Estou mais preocupado com a falta de renda para comprar alimentos’, diz diretor do Banco Mundial

Otaviano Canuto avalia que o Brasil tem no Cadastro Único, que reúne os brasileiros de baixa renda, um instrumento importante para mitigar o impacto da crise no País

Redação Jornal de Brasília

23/03/2020 16h32

Foto: Agência Brasil

BRASÍLIA – O ex-vice presidente e ex-diretor executivo do Banco Mundial Otaviano Canuto avalia que o Brasil tem no Cadastro Único, que reúne os brasileiros de baixa renda, um instrumento importante para mitigar o impacto da crise no País, mas que será preciso uma ajuda bem maior do que os R$ 200 prometidos pelo governo para os trabalhadores de baixa renda. “Estou menos preocupado com a falta de alimentos e mais preocupado com a falta de renda para comprar alimentos”, afirma.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo do Brasil ofereceu R$ 200 para os informais. Será preciso aumentar muito esse valor?

Evidentemente, serão necessários bem mais do que R$ 200. Não temos clareza de quão longo será o confinamento. Eu disse aos meus filhos: ‘se preparem. É um estado de guerra. O confinamento vai demorar provavelmente até maio’. É preciso ver o que pode ser feito de postergação de tributos.

O Brasil terá problemas para se financiar, emitindo dívida, e bancar a demanda por recurso?

Não creio. Uma condição importante para isso é que seja visto pelos credores como um movimento reversível, que não se trata de uma mudança permanente do patamar de gasto e, portanto, uma mudança duradoura na trajetória fiscal.

O Brasil tem alguma peculiaridade, uma vantagem, na crise que seja um alento ou estamos no pior cenário? Que tipo de vantagem poderíamos ter?

Não, o Brasil não tem. Mas um instrumento como o Bolsa e um grau razoável de mapeamento através do Cadastro Único é importante para mitigar. Tem países que não têm isso, nem sequer tem esse canal para mitigar.

Vai faltar alimento para as pessoas?

Eu estou menos preocupado com a falta de alimentos e mais preocupado com a falta de renda para comprar alimentos. O sistema de produção e distribuição pode com o devido cuidado não ser bloqueado.

Qual o papel das políticas fiscais, de aumento de gastos?

Elas estarão sendo voltadas para tentar mitigar o impacto socioeconômico. Tipo adiar os prazos adiamento de tributos, talvez a ideia do dinheiro de “helicóptero jogando dinheiro na conta.

O Brasil tem dinheiro para isso?

Temos que diferenciar. Tem uma mistura no Brasil do que é uma medida emergencial e de longo prazo. Para medidas emergências, desde que sejam feitas de forma reversível, não vão colocar em risco, dentro de um certo limite, a perspectiva de ajuste de fiscal. Não precisa mexer com o teto de gastos (regra que impede que as despesas cresçam acima da inflação, mas permite que o Congresso aprove crédito extra fora da norma). E tem a possibilidade de estender, além do Bolsa família, atender os pobres informais.

Como está sendo reação no mundo?

A percepção clara é da gravidade e profundeza da crise. O que estamos assistimos é um processo com três dimensões. A primeira é a epidemiológica. Dadas as características do vírus, a resposta tem sido de bloqueios, mais ou menos drásticos, na esperança que estendendo no tempo o processo de contaminação diminua a demanda por serviços clínicos e a capacidade de oferta. Esse quadro gerou a crise no lado real das economias, a segunda dimensão, porque há simultaneamente choque de oferta e demanda. No início, a leitura básica era a de que a crise estaria meio que circunscrita à China. Se tinha ideia que seria um V, batendo fundo, mas no segundo trimestre a China começaria a se recuperar e, na segunda metade do ano, boa parte do choque teria sido dissipada. A coisa muda de figura quando o coronavírus explode no resto do mundo. O que é pior: o choque simultâneo jogando a economia de outros países em recessão, eliminando de vez a possibilidade de a China sair da crise em forma de V.

Qual é a terceira dimensão da crise?

É a dimensão dos mercados financeiros. O choque epidemiológico gera um choque sobre as finanças. Automaticamente os investidores se tornam mais avessos ao risco e mais inseguros sobre como ficar com os ativos que compraram. Além disso, esse choque se dá sobre os mercados financeiros que não estavam lá com um grau elevado de imunização, de imunidade. Se você pensar o que tem sido a evolução do mercado financeiro, particularmente nesses últimos cinco anos, é um sistema de valorização de ativos impressionante, a subida de valor de ações durante o período do governo Trump (Donald Trump, presidente dos Estados Unidos). É também impressionante como subiu brutalmente o nível de endividamento possível para empresas não financeiras.

O que isso pode representar?

Tudo isso ocorreu num quadro sem bancos cumprindo o papel de intermediários. Os bancos foram tolhidos pela regulação bancária pós-crise financeira global e ficaram quietinhos. Se olharmos só para a estrutura patrimonial dos bancos, estão em geral em situação sólida. Algumas dúvidas na Europa. Aqui, nos Estados Unidos, eles estão seguros, tranquilos. Isso aconteceu, porém, porque instituições financeiras não bancárias é que assumiram o lugar dos bancos na intermediação financeira.

O que essa situação levou aos mercados?

Com o FED intervindo e evitando maior volatilidade, o fato é que isso criou um ambiente para uma festa. Baixa volatilidade, baixíssimos juros e o FED com um volume grande de títulos do Tesouro, criou-se um ambiente extremamente favorável à valorização de ativos. E foi essa festa que a gente viu. Investidores institucionais, todo mundo atrás de rendimento.

Por isso o baque agora está grande?

Isso. Além disso, as instituições que fazem esse meio de campo são o que o mercado chama de “agentes passivos”, investidores passivos, que funcionam com regras que mandam vender ou comprar de acordo com o nível de volatilidade, a evolução disso ou daquilo. Eles não são ativos. A maior parte dos investimentos está em fundos que compram cestas, cotas de fundos que congregam por várias razões diferentes tipos de empresas, papéis. Isso ajudou na fase de subida, com volatilidade baixa alimentando o reinvestimento e foi crescendo. Enquanto os preços estão subindo está todo mundo contente. Começamos a ver problemas que o mercado secundário mostrou a partir de outubro do ano passado. Esses fundos passivos para operar necessitam ter um mercado secundário para poder de vez em quando trocar papéis por liquidez. Esse mercado ficou pequeno e os bancos por razões próprias não quiserem ficar bancando. O fato é que a gente começou a ver em outubro sinais de stress nesse mercado. O choque vindo do coronavírus gera uma corrida por cash, liquidez.

O que esse movimento resultou?

Só que quando isso acontece dadas as características do sistema, dominado pelos investidores passivos, as regras mandam esses caras todos venderem para pegar cash. O que acontece quando todo mundo faz isso? Tem uma liquidação de preços e ativos como temos visto nas últimas semanas. Bolsa, títulos de dívida corporativa não financeira. Há um outro efeito que foi o desaparecimento, o corte do funding em dólar para bancos estrangeiros. O dólar ficou não só mais caro como escasso. Isso começou a gerar pressões no sistema bancário, inclusive. O FED fez um grande programa de intervenções cirúrgicas em vários segmentos do mercado financeiro. Não foi para poder revalorizar os ativos. Ninguém nesse momento imagina que isso seria possível, mas para evitar falências. Para evitar que a terceira dimensão da crise, que é a financeira, venha a contaminar o econômico.

Diante do alcance da crise, o impacto dessas ações regulatórias dos Bancos Centrais não é limitado?

Sim. A recessão virá, uma depressão longa. Elas não são suficientes para lidar com o impacto social que a crise vai trazer. O diabo de tudo isso é que o choque simultâneo de oferta e demanda tem um efeito primordialmente sobre certo conjunto de serviços, empresas, de trabalhadores. A Europa tem sistema de proteção social que vai segurar a onda de boa parcela da população. Mesmo assim, medidas de alívio tributário, postergação de prazos de pagamento de impostos estão sendo aplicados, desde que as empresas não demitam. Nos Estados Unidos, é complicado porque não se tem o sistema de proteção como na Europa. As empresas já estão demitindo e o rendimento das pessoas é de acordo com a quantidade de horas que trabalham.

Estadão Conteúdo

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado