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Luto: “meu coração tropical está coberto de neve”…

Em um tempo em que a tarde cai “feito um viaduto”, o Brasil perde um dos maiores dos seus poetas, vítima dessa estúpida doença que nos mantém trancados em casa

Rudolfo Lago

04/05/2020 11h59

Ao final, não foram as “febres loucas e breves”. Ao final, o mar certamente não misturará “safiras, cristais, cordas podres”. Em um tempo em que a tarde cai “feito um viaduto”, o Brasil perde um dos maiores dos seus poetas, vítima dessa estúpida doença que nos mantém a todos trancados em casa enquanto uma pequena horda de insensatos alimentada por alguém que, no mínimo, não compreende o que está acontecendo, sai às ruas achando que pode vencer o vírus no braço. São tempos em que, “em plena boca nos bate o açoite contínuo da noite”. Aos 73 anos, a covid-19 levou Aldir Blanc.

Aldir deu entrada no Centro de Emergência Leblon, no dia 10 de abril, com complicações respiratórias. No dia 15 de abril, foi internado no Centro de Tratamento Intensivo do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, bairro onde nasceu e retratou muitas vezes nas letras das suas canções. Testou positivo para o novo coronavírus. Foi mais uma das muitas vítimas da doença que o presidente Jair Bolsonaro recentemente tratou como sendo só “uma gripezinha”.

Muita gente foi baiana. Mas ninguém foi mais baiano que Dorival Caymmi. Pois foi Caymmi quem assim disse sobre Aldir: “Todo mundo é carioca. Mas Aldir é carioca mesmo”. Formado em Medicina, Aldir tinha especialização em psiquiatria. Mas na década de 1970 abandonou a especialidade para começar a vasculhar a mente humana a partir das letras das suas canções. Que em boa parte das vezes retratavam os humores e os sentimentos da gente simples dos subúrbios do Rio de Janeiro. Em um grande número de lindas canções, fazendo parceria com um mineiro igualmente genial, João Bosco.

A maior cantora de todos os tempos, Elis Regina, sempre foi muito rigorosa na escolha de seu repertório, a partir do qual imortalizou nomes como Milton Nascimento e Gilberto Gil. Pois nenhuma outra dupla de compositores foi mais gravada por Elis Regina que João Bosco e Aldir Blanc. Não é preciso dizer mais nada a respeito da qualidade do trabalho dos dois.

Aldir surgiu para a música no final da década de 1960. Depois da participação em alguns festivais da canção, seu primeiro grande sucesso foi “Amigo é pra Essas Coisas”, em parceria com Silvio da Silva Júnior, imortalizada nas vozes do MPB-4. A canção já traz diversas das características que marcariam a poesia de Aldir, como a linguagem coloquial das ruas.

A parceria com João Bosco começa no início da década de 1970, quando uma canção dos dois aparece no lado B do “Disco de Bolso” do Pasquim. O “Disco de Bolso” era uma iniciativa do famoso “hebdomadário” de humor. Um disco que tinha de um lado uma canção de um compositor conhecido e do outro uma composição de um novato. Pois o “Disco de Bolso” de João e Aldir tinha, de um lado, Tom Jobim cantando “Águas de Março” e do outro a dupla com o seu “Agnus Sei”.

A partir daí, foi a consagração pela voz de Elis. “Falso Brilhante”, uma das obras-primas da dupla, deu nome a um dos shows mais memoráveis da cantora. E outra obra-prima, “O Bêbado e a Equilibrista” tornou-se o hino da anistia e foi considerada, em um votação feita no final do século passado, uma das cem canções mais bonitas da história da música brasileira.

Quando Aldir fez 50 anos, ele gravou um lindo disco ao lado de diversos artistas. Para esse disco, compôs, com Cristovão Bastos, “Bodas de Sangue”. Nos versos da canção, Aldir dizia:

“Aos 50 anos, insisto na juventude”. Agora, a tarde cai feito um viaduto. Aldir provavelmente diria: “Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem de continuar”.

Alguns versos do genial Aldir Blanc

“Meu coração tem botequins imundos,
Antros de ronda, vinte-e-um, purrinha,
Onde trêmulas mãos de vagabundo
Batucam samba-enredo na caixinha”
“O amor é um falso brilhante”
“Acho que o amor é a ausência de engarrafamento”
“A alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado”
“Caía a tarde feito um viaduto”

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