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Folhetim "Outro Lugar na Solidão"

Morte: Curta, Comente, Compartilhe…

Folhetim “Outro Lugar na Solidão” – Capítulo 1

Redação Jornal de Brasília

18/06/2020 8h52

Por: Marcos Linhares, Adriana Kortland e Marcelo Capucci

Ele digita com dificuldade, sob o peso da emoção e do cansaço. No dedo médio da mão direita, um pequeno corte ainda sangra. Já na mão esquerda, uma farpa alojara-se por baixo da unha. Ele digita determinado.

Título da live:

“Funeral de meu irmão na sala de nossa Casa”. 3.2.1…:

– Olá, aos poucos que me conhecem. Eu sou Oscar Lima e hoje faço esse vídeo para homenagear o meu irmão, Sancho. Ele pegou essa doença maldita, a covid-19. Trabalhava numa loja. O patrão não respeitou o isolamento social imposto pelas autoridades sanitárias e pela Organização Mundial da Saúde. Um primo do patrão dele foi fazer compras no estabelecimento e espirrou perto deles. Eles estavam sem máscara e sem luva. O chefe do Sancho pegou também. Mas, está num hospital particular. Meu irmão não conseguiu um leito de UTI.

Oscar dá uma parada, tosse seco. Tenta se controlar:

– Como vocês podem ver, nós moramos em um lugar apertado. Aqui é bom, mas é pequeno. Com o que ganho, por dia, como entregador de comida por aplicativo, usando uma bicicleta emprestada, não deu para ajudar muito o Sancho. Consegui fazer o que pude. Até a tosse dele peguei também.

Uma primeira lágrima rola de seus olhos nesse momento. Nisso, um dos colegas de Sancho, o único que estava online acompanhando a transmissão, resolve agir, e compartilha o link da live para um cliente que trabalha numa TV local.

Acho que eles podem passar isso. Podem não, devem!

Manda e torce…

Oscar, trêmulo, retoma a narrativa:
– Juntei uns restos de madeira que estragavam no nosso quintal. Madeira que tava encostada aqui e era do dono do barraco, restos de obra. Peguei uma caixa de ferramentas emprestada e comprei um punhado de pregos na mercearia, lá na entrada do Tamarindos. Fiz dois caixões: o meu e o do Sancho.

Ele para, respira com dificuldade.

– Bom dia senhores telespectadores, entramos agora ao vivo, mostrando a live de um jovem que transmite o funeral do irmão direto da sala da casa dele. Ao que tudo indica, o irmão é mais um paciente que morreu acometido pela pandemia de covid-19. Vamos acompanhar. Disse o âncora do telejornal.

Com o celular na mão, Oscar mostra o caixão do irmão e vai se aproximando:

– Vou mostrar o Sancho. Parece que mais pessoas entraram. Eu sabia. Tinha certeza. Coisa boa, não, mas desgraça dos outros sempre chama a atenção. Vejam. Vejam! Esse é o Sancho. Era um trabalhador. Honesto. Correto. Gente boa. Com medo de perder o emprego, que nem os pobres do país, né? E aquele ali ao lado é o meu caixão. Como sei que também… Oscar para, embarga a voz, começa a chorar. Pipocam na tela milhares de emojis de coração, legal e lágrimas. As centenas de pessoas que agora assistem, nada falam.

Nenhum comentário.

– Sancho gostava de ler, acreditam? Ele pegava livros por onde passava. Por isso, ao lado dele dentro do caixão coloquei alguns livros, acho que ele teria gostado. Oscar para e fixa a imagem no rosto de Sancho, uma imagem para ninguém esquecer.

Geograficamente perto mas, socialmente a mundos de distância, Giaco acompanhava a cena.

Depois de uma noite inteira em um plantão interminável na UTI geriátrica, o Dr. Giacomo Maurício Brecchia se permitira um café e um sanduíche na cantina do hospital, antes de ir para casa. Sua geladeira, com certeza, não se teria enchido automaticamente durante a noite. Levou a bandeja para o canto mais escondido possível, ansiando por não ser incomodado, e começou a saborear o banquete de queijo e presunto.

– Viu isso?, perguntou o doutor Téo Silva, jovem médico intensivista que acabara de chegar para sua jornada de 12 horas no comando das ações de terapia intensiva da Unidade, mostrando-lhe a live do sepultamento de Sancho, enquanto puxava a cadeira, sentando-se ao seu lado.

– O quê, cara? Claro que não! Você sabe que eu detesto redes sociais.

– Ah…, mas isso aqui, não é voyeurismo de desocupado. É a realidade que está nos alcançando, depois de semanas de negacionismo da pandemia.

Giaco deu uma olhada, abaixou-se em direção ao celular. O barulho de cadeiras sendo arrastadas, pratos, talheres, torneira aberta, gente falando, tudo junto e regado pela exaustão do plantão, impediam um pouco a compreensão da fala do homem da live.

– E, pasme, é aqui na cidade. Essas redes sociais são uma comédia mesmo, né?!, disse o outro médico para Giaco, completando:

– Eu sei muito bem o que esse cara está passando.

– Ah, é?

– É. Eu vim de Tamarindos. Estudei em escola pública e só saí de lá quando consegui minha vaga na Universidade de Brasília. Chega a ser engraçado: um cara que nunca saiu da perifa desembarcar na Capital Federal, com uma mão na frente e a outra atrás e, depois voltar pra mesma perifa com um canudo de medicina nas mãos.

– Mérito seu, emendou Giaco.

Mas antes que o médico mais experiente do hospital tivesse tempo de matar a curiosidade sobre as cotas, a UnB e etc, uma voz chamou pelo único médico negro do hospital:

– Dr. Téo, já tem paciente esperando e o senhor ainda precisa vestir todos os EPIs.

– Já vou! Enfim, Giacomo. Fui. Bom descanso pra você. Sua cara já me contou como foi a noite.

– É… valeu! Me manda o link desse vídeo?

– Não é vídeo, é live. O cara tá falando agora, enquanto grava. Mas, se perder, tem problema, não. Fica na minha linha do tempo, no Face. Você tem Face?
– Tenho, mas não uso. Dá pra mandar o link? Onde é?
– Dá, claro! É bem ali, no quilômetro 15 da BR. O pessoal chama de Comunidade Tamarindos. Quer dizer… Comunidade é nome moderno, né? No meu tempo era perifa, quebrada, favela, mesmo! Disse, o bem humorado plantonista.

Giaco conectou-se à transmissão, que já anunciava chegar ao final.

Em casa, colocou uma cadeira de plástico debaixo do chuveiro bem quente, e quedou-se por lá, esparramado, massageando o pescoço, a base da cervical, mais tensa do que corda de violino. Porém, não conseguiu ficar o quanto sonhara desde o final da madrugada. Fez um café bem forte, colocou-o no copo térmico, este último, na mochila, e foi em direção ao carro, direto para Tamarindos. Enquanto andava, encaminhou o vídeo para Nonata.

>> CONTINUA NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA

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