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Folhetim "Outro Lugar na Solidão"

Felina

Folhetim – Outro lugar na Solidão. Capítulo 12

Redação Jornal de Brasília

28/07/2020 10h14

Por Marcos Linhares, Adriana Kortland e Marcelo Capucci
Especial para o Jornal de Brasília

Deixando o turbilhão de sua vida do lado de fora, Suzana sentou-se ao pé da paineira, fechou os olhos, entregando-se ao seu segredo. Imaginando-se dirigindo o Corsa até a cidade vizinha, como há exatamente um mês, ela reviveu um filme.

Naquela noite, se alguém tivesse prestado atenção na motorista que saíra de sua garagem, teria visto a silhueta de uma mulher de cabelos longos, cacheados, acobreados, diferente da Suzana, de cabelos negros, curtos, corte rente à nuca. Ela se viu chegar na periferia da cidade vizinha, entrando em uma ruazinha de terra batida, e estacionando atrás de uma construção meia boca, mas ampla e semi-iluminada. Abriu a porta de ferro dos fundos, andou pelo corredor, entrou em um quarto espaçoso, e, fechando a porta, tentou acalmar sua crescente excitação. Acendeu as luzes que circundavam o espelho.

Suzana suava.

Abriu a maleta, que normalmente fica escondida no armário da garagem, e começou a organizar seu conteúdo sobre a bancada, diante do espelho. Entre as coisas, procurou sôfrega uma pequena garrafa de vodka – Crystal Head – a mais pura que já provou e que a acompanha todas as quartas-feiras. O que a fez comprar a primeira garrafa, foi sua forma: uma caveira. Suzana cansou de ver crânios no hospital, crânios escondidos atrás da máscara da pele. De alguma forma inexplicável, ela se identificou com isto. Afinal, ela sabe usar as suas.

Bebeu dois ou três goles, olhou-se no espelho e começou o ritual da preparação.

Jamil entrou no Felina’s bar, e pediu uma cachaça.

– Fala, Jamil!!! Sumido, hein?

– Cadê a Crystal?, perguntou Jamil, varrendo o salão penumbroso com os olhos semicerrados, bebendo de um trago todo o conteúdo, e estendendo o copo para o barman.

– Deve tá se arrumando. É uma gata, né? Ai, se eu pudesse… respondeu o barman, servindo a segunda dose.

– É, mas não pode! Aquela ali é só minha!

– Que só tua cara? Acorda, pião! Todo mundo vem pro Felina’s só pra ver ela!

– Não me provoca, que hoje não foi meu dia!

– Eu? De jeito nenhum. Cê que manda. Eu só tava…

– Agora não tá mais…

Foram interrompidos pelos primeiros acordes de “Entre tapas e beijos”, e, junto com eles foi acesa a última aquisição do bar, a bola de espelhos. De uma coxia eternamente improvisada com uns panos pretos saiu Crystal, a dançarina que atraía os homens da região como moscas ávidas por mel. Ela usava um tapa sexo e um sutiã de tule preto, ambos estrategicamente adornados com estrelas de strass prateado, um belo contraste com a pele clara. O rosto era quase completamente coberto por uma máscara vermelha, igualmente ornamentada com strass, deixando apenas os lábios aparentes. Estes eram pintados da mesma cor da máscara, aumentados artificialmente com lápis e gloss. Dançando como uma serpente, Crystal continuou seus movimentos espiralados, passando pelas mesas, chegando perto dos clientes e afastando-se ao mesmo tempo. Um deles segurou-a pelo elástico do sutiã, tentando rompê-lo. Em segundos, lá estavam os seguranças armados, arrastando-o para fora do bar. Gritos obscenos reverberavam por todo o salão. O sorriso de Crystal se ampliou, e ela continuou sua dança serpentina, agora chegando perto da barra de “pole dance”. Ao contrário das súplicas, ela não fez o tão desejado “strip tease”, anunciado por não se sabe quem, para o qual uma mesa de apostas tinha sido organizada. Outras músicas se seguiram, abafadas pela balbúrdia no bar.

O corpo atlético de Suzana subia e descia da barra, girava, fazia espacatos frontais e laterais, abrindo as pernas de modo a formarem um ângulo de 180°, provocando palmas, urros e uma chuva de cédulas, até em dólar. Um rapazinho, devidamente posicionado, corria para apanhá-las. O montante seria dividido entre Suzana e o dono do Felina’s.

Ouvindo aplausos, urros, pés socando o chão, Crystal saiu de cena, voltando para o seu quarto. Estava molhada dos pés à cabeça e entre as pernas.

Entrou e fechou a porta à chave.

– Hoje você é toda minha, a noite toda!

– Tá podendo, hein???

– Pra quê que eu trabalho que nem escravo?

– Pra me servir, respondeu ela à voz que vinha detrás do biombo, ao fundo do quarto.

– Sirvo o quanto quiser… mas eu quero sem máscara!

– Vai sonhando…

Depois de verificar se a máscara estava firme, Suzana contornou lentamente o biombo, e, portando apetrechos, subiu na cama. Usando botas pontudas, ela se posicionou de pé, uma perna de cada lado de Jamil, nu e ofegante.

Amanhecia. Suzana voltou para casa. Tomou banho, colocou suas roupas de Crystal de molho na banheira, vestiu as da enfermeira e entrou no Grand Vitara, rumo ao hospital. Cenas da noite passeavam por sua mente, acompanhadas de um amplo sorriso irônico.

– Ah… os homens… como são simplórios…

Sincronicamente a este pensamento que expressava a sua necessidade de dominar, de se sentir superior, surgiu a memória de Giaco, e o sorriso se desvaneceu. Continuou a dirigir, agora sentindo o estômago pesar. Náusea. A vida que levava, vazios e excessos, tinha seu preço. Se, com Jamil ou qualquer outro, Suzana fazia o que queria, não era o caso com seu eleito. Toda medalha tem seu reverso. Suzana parou o carro, saiu e vomitou no acostamento.

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA

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