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Folhetim "Outro Lugar na Solidão"

A ladeira da Ventura

Folhetim – Outro lugar na Solidão. Capítulo 10

Redação Jornal de Brasília

21/07/2020 7h39

Atualizada 23/07/2020 9h57

Por Marcos Linhares, Adriana Kortland e Marcelo Capucci
Especial para o Jornal de Brasília

– A vida quer movimento! Ai! Coragem! Ui! Eu não me vou entregar! Uhhh! Ahhh!!!

A dor consumia as entranhas de Maria, que tinha a face, o corpo, a vida e as roupas encharcadas de suor e sofrimento. Aquela mulher do Norte do Brasil não perderia o bebê pelo motivo que fosse:

– Não vou desistir! Essas foram suas últimas palavras.

Por um milagre, o rebento rompeu os primeiros grilhões que pontuariam seu caminho. O choro quase não saiu, até que quebrou os cristais do silêncio. A menina nasceu, arrancada do ventre corajoso da mãe por intervenção cirúrgica, depois de sua morte. Não deu outra, seguiu o caminho de cerca de 4% dos nascimentos do Brasil e recebeu o nome de Nonata. Nonata Ladeira Ventura da Silva.

Aos três anos, a avó, Raimunda, perguntou-lhe o que queria ser quando crescesse. Ela respondeu de pronto: Doutora de bebê! Moveu as carroças do destino sempre a pensar na mãe. Maria nunca esteve longe dela. A filha sentia sua presença. Afinal, a avó sempre dizia que Nonata nasceu graças ao amor da mãe, e que ela, não interessava o que fosse fazer da vida, fizesse a diferença.

– A vida quer movimento. O que dá sentido a tudo são as pessoas, não importa se boas ou más. O que você pode fazer é a sua parte nesta colheita. Repetia a experiente senhora:

– Vai ter dor? Vai! Vão te decepcionar e te trair? Vão! Vai ter hora que os planos vão dar errado? Sim! Que as expectativas não vão se confirmar? Sim! Muita gente que ama vai morrer? Vai! Não importa! Faz parte da vida. Seja a diferença, dê amor, mesmo se não o receber de volta. Aqui e ali virão sorrisos, abraços, amores, conquistas…

Essas palavras embalaram a criação de Nonata e foram tatuadas na alma.

Quando criança, tinha paixão pela natureza, pela ciência da roça. Fazia experiências com formigas, com plantas. Normalmente, davam errado. Não importava. Seu corpo, apesar da pouca idade, já ostentava várias cicatrizes.

Num dia, uma prima mais velha passava roupas, e ela, pequena, brincava em seus pés. A prima perdeu a paciência: pegou o ferro quente e passou no peito dela. A pele saiu. Por mais um dos milagres, dos vários que salpicaram a mágica vida de Nonata, com os anos, sumiram as marcas desse ato atroz e impensado.
Um tio a odiava. Colocava nela a culpa pela morte da mãe e lhe dava surras inesquecíveis.

– Você tirou a vida da minha irmã, filha desnaturada, você merece sofrer! Dizia o tio, empunhando cinto, cipó ou o que achasse pela frente. Com o tempo, Nonata aprendeu a correr. Desistiu de tentar entender essa loucura.

Curiosa e incansável, destacou-se com naturalidade. Uma líder nata. Nunca deu presentes. Sempre os recebeu. A escola foi uma conquista. Foi a pé todos os dias, vencendo os 18 quilômetros, somando a ida e a volta. Fez provas mesmo sem ter todos os livros e material escolar. As notas sempre altas. Tudo o que conseguiu foi com dificuldade e legitimamente seu.

A faculdade foi outro milagre. Foi oradora da turma. Fez residência em Ginecologia e Obstetrícia. Transitou por diversos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). Fez mestrado em Pediatria Geral e Comunitária e doutorado em Doença Cardiovascular. Ainda achou tempo para um Fellowship em Medicina do Parto, na Alemanha.

Por vários anos atuou em uma ONG, com saúde da mulher. Seu olhar sempre holístico via a doença por diferentes prismas. Nonata era fruto de um milagre da vida e faria da vida um milagre diário.

Fez concurso e foi para um hospital público. Casou-se com Sílvio. Lá pelas tantas o marido se foi, levado pela Doença de Gaucher, que causa alterações no fígado e no baço. Mesmo ele também sendo médico, teve um difícil diagnóstico. Mais uma prova, das tantas que marcaram a caminhada dela.

Nonata mora só em um apartamento com poucos móveis e muita praticidade. O prédio fica perto do hospital. De vez em quando, ela dá palestras e faz cursos de atualização. Suas viagens são, normalmente, para congressos. Estudar, estudar, sempre! Tem um grande amigo, Dr. Murilo, que fez ginecologia na mesma faculdade que ela. É seu grande companheiro, quando sobra tempo.

Nonata sente-se uma sobrevivente. Tem saudades da avó. Às vezes, recebe ligações dos sobrinhos, que seguiram a mesma carreira da tia famosa da família. Afinal, não era incomum ver matérias nos jornais sobre algo novo que ela criava no hospital.

Ela sabe que a aparência de uma médica é importante, por isso, trava uma batalha consigo mesma para manter os cabelos negros alinhados. Usa um pouco de maquiagem. Em casa, para manter seu 1,60m em forma, se esforça à base de esteira e ergométrica. Sabe que não pode vacilar com a própria saúde:

– Tenho que colocar a máscara em mim primeiro. Se meu motor falhar, não vou poder ajudar quem precisa…

Teve poucos relacionamentos.

– Dá trabalho e tira o foco. Os pacientes são meu motivo de viver. A morte do marido apenas movia Nonata para não mais perder tempo com relacionamentos amorosos …. Tudo ia bem até chegar Giaco, que estremeceu todas as suas certezas.

– Outro médico? Agora aos 64?! Será?

Nonata não era mulher de congelar perante os temores, de pendurar no armário a vontade de ir em frente. Afinal, a vida quer movimento, coragem, e ela não ia se entregar.

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA

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