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Brasília

Vírus escancara a desigualdade no país

JBr mostra como brasilienses enfrentam a quarentena. Edson Silva espera trabalho em seu barraco improvisado. O advogado Estenio Campelo está em home office

Redação Jornal de Brasília

25/05/2020 6h44

Mesma tempestade, barcos diferentes

Pandemia na capital do país, o Jornal de Brasília mostra o retrato de quatro famílias durante o período de quarentena frente ao coronavírus

Catarina Lima e Vítor Mendonça
[email protected]

A pandemia do novo coronavírus trouxe nova realidade para todos, desde os mais ricos até as pessoas em situação de rua. As rotinas foram alteradas. Mas a nova realidade escancara ainda mais as desigualdades de um país marcado por grandes diferenças sociais: de acordo com Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), 2,7% das famílias brasileiras concentram 19,9% da renda.

O Jornal de Brasília procurou famílias que representam diferentes classes sociais vivendo na capital brasileira. Foram ouvidos desde as mais humildes às mais abastadas. As que que fazem parte desta reportagem foram atingidas de diferentes formas pelas medidas de isolamento social. Enquanto alguns aproveitam para repensar suas rotinas, outros perdem o sono pensando na despensa vazia e no que vão comer no dia seguinte.

Estar em uma tempestade não significa estar em um mesmo barco. Em uma Brasília com o Índice de Gini – instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade social de um determinado país, unidade federativa ou município – na marca de 0,513, segundo último levantamento do IBGE, superior à média nacional, de 0,509, as distantes realidades entre as classes sociais se tornam ainda mais contrastantes. No indicador de Gini, quanto mais próximo de 1, menores as disparidades de desigualdade social de um local específico.

Isolamento de luxo

Em um residencial de luxo na Asa Sul, a recepção é feita por Estenio Campelo. 72 anos, empresário e um dos advogados mais reconhecidos da capital. Logo na entrada do apartamento, um dos recursos para evitar o contato físico com a maçaneta e mitigar possíveis riscos de contágio indireto é uma porta com sistema de abertura eletrônico. “Bem-vindo”, recepciona o proprietário, “fique à vontade”.

Estenio contou que, durante parte da quarentena e à convite de um amigo de Brasília, passou três semanas na fazenda, que fica na zona rural da Fercal com a esposa e o filho de 6 anos. “Vínhamos aos domingos para ver se estava tudo bem, fazíamos pagamentos para os empregados e voltávamos para a fazenda novamente. Voltamos definitivamente no domingo passado (17)”, disse.

Durante a quarentena e diante do risco de contaminação, Estenio foi um dos empresários que precisou fechar temporariamente o negócio. No dia 10 de março, logo após a determinação do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, de fechar as atividades comerciais não essenciais, os funcionários do escritório de advocacia Campelo Bezerra Advogados Associados tiveram férias coletivas antecipadas. Em 22 de abril, os escritórios foram liberados e o sistema de escala foi adotado.

“Intercalamos a parte administrativa com cada funcionário trabalhando dia sim, dia não, para não haver aglomeração. Os advogados, por sua vez, têm suas salas individuais, então recomendamos que ficassem com as janelas abertas ao invés do ar condicionado [para ventilação do espaço]. E fizemos uma desinfecção de todo prédio, desde a garagem até o último andar e em cada sala”, comentou.

A rotina de trabalho no escritório, anteriormente de 9h às 18h30, passou a funcionar de 10h às 12h30; o restante das atividades é realizado em home office. São poucas as saídas feitas por Estenio, e o trajeto é apenas da garagem do residencial para o trabalho. Para as compras de casa, o motorista da família é o encarregado do serviço. “Só saio algumas vezes para o caixa do banco também, com as devidas precauções”, acrescentou o advogado.

Estenio, de forma humilde, se sente privilegiado. “Graças a Deus tenho a possibilidade de ter uma cobertura. Lá em cima eu brinco com meu filho. Tem piscina, spa, banheira, sauna, um terraço. É como se eu estivesse em um clube”, conta. No mais, ele conta que, em outros momentos, passa o tempo com leituras de revistas, jornais e noticiários.

Para cuidar da casa, juntamente com o motorista, outras quatro pessoas cuidam da dinâmica do apartamento: são duas empregadas domésticas que o visitam três vezes por semana; um piscineiro para a limpeza da piscina no andar superior, duas vezes por semana; e um jardineiro a cada 15 dias.

Escritório com vista para o jardim

Foto: Arquivo pessoal

Desacelerar, aproximar-se mais da família e descobrir os benefícios da TV por streaming pode ser o legado do isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Moradora do Lago Norte, a dentista Ilana Guimarães, proprietária de uma clínica de odontopediatria e responsável por uma equipe de 17 profissionais entre dentistas, auxiliares e administração, não sabia o que era ficar em casa, olhando a natureza exuberante de seu jardim ou ver uma série na TV com o marido, tampouco como curtir o sol com o filho Matheo, de 14 anos, e os enteados. Agora, o trabalho continua, só que online. E a vida mudou: além do trabalho, outras prioridades surgiram.

“Como estou no grupo de maior risco por ser hipertensa, estou afastada fisicamente da clínica. Atendo os pais dos pacientes por telefone para dar orientações e tirar dúvidas. Também já fiz três lives sobre odontologia e continuo com os cursos que a minha empresa oferece, só que online”, disse a dentista.

Até preparar as aulas e cursos tem tido um gosto diferente para Ilana. “Eu não uso o escritório de casa, fico no meu quarto com computador. Trabalho enquanto observo a natureza do jardim.” O escritório é usado pelo marido, Paulo, servidor aposentado que atualmente presta consultoria a empresas.

Segundo Ilana, o dia a dia da família segue sem muitas dificuldades. Matheo, aluno em escola bilíngue do DF, tem tido aulas online, porém em um ritmo mais tranquilo do que quando as aulas eram presenciais, relata a mãe. Além do adolescente, costumam estar presentes os outros filhos de Paulo, que também ajudam na divisão das tarefas. “O Otávio, filho do Paulo, é quem costuma fazer as compras da casa. E quando ele vem pra cá, traz”, exemplificou Ilana.
Empregada dorme em casa

Até para a auxiliar Sílvia, a empregada doméstica da família, foi pensada uma forma de adaptar a rotina do isolamento da família. “Eu me preocupava de ela vir todos os dias, tendo que pegar ônibus e correndo o risco de se contaminar, mas encontramos uma forma. Ela fica 15 dias aqui e, quando vai para casa, aproveita a carona do caseiro. Ela preferiu isso do que tirar férias”, explicou Ilana.

“Para nós, dividir o espaço não tem sido um problema. Estou aproveitando para fazer coisas que não costumava fazer. Eu sempre trabalhei muito e pela primeira vez estou tendo a oportunidade de curtir a família e a casa, apesar do momento tão difícil pelo qual estamos todos passando”, concluiu.

Correndo do rapa

Driblar a fiscalização do DF Legal para tentar vender lanches nas ruas da Ceilândia, uma vez que o comércio ambulante está proibido devido a pandemia do novo coronavírus, é a nova rotina de Nailma e Francisco Bezerra. No dia marcado para a entrevista desta reportagem, não estavam no local combinado, o ponto de venda. Tiveram de juntar toda a mercadoria e deixar o lugar às pressas para fugir do rapa – fiscalização no centro da Ceilândia.

“É difícil viver sem tranquilidade. Ou você é infectado pelo vírus ou você fica sem trabalhar e sem comida em casa; é muito cansaço. É claro que eu queria mais que tudo ficar em casa, me cuidando, mas não tem como. O pensamento na renda da família não sai nunca da nossa cabeça”, desabafou Nailma por telefone.

Trabalhar em dobro para ganhar a metade

O casal, que mora na Ceilândia e criou os dois filhos com os lanches que fazem e vendem, ainda luta para lidar com o sustento de todos. Um dos filhos trabalha numa farmácia e é, neste momento, o único que conta com renda garantida. O mais novo, Gabriel, de 18 anos, foi aprovado no curso de Comunicação Social da Universidade de Brasília (UnB), mas devido à pandemia não pode frequentar as aulas. “Estou muito ansioso para ter aulas, caminhar pelo minhocão, ir no restaurante universitário”, disse, saudoso, referindo-se aos pontos conhecidos da universidade. O trabalho de casa, que sempre foi dividido pela família, não mudou nada com a pandemia. O que mudou e preocupa a todos é o sustento do dia a dia.

Por causa ada pandemia Gabriel perdeu o emprego em uma gráfica. Com as aulas suspensas e sem trabalho, ele agora usa o tempo livre para ajudar os pais como pode na venda dos lanches e para cuidar da página @ArtesUnB, que criou na Internet para divulgar a arte produzida pelos colegas da universidade.

Apenas a mãe de Gabriel conseguiu se cadastrar para receber o auxílio emergencial do governo federal de R$ 600. Durante o isolamento social, definem a rotina de vida da seguinte forma: “trabalhar em dobro e ganhar pela metade”. “Em duas horas de trabalho meus pais tiravam R$ 100,00. Hoje trabalham muito mais e o ganho diário não passa de R$ 50,00.”

Quarentena sob um barraco

 

Edson Silva, 27, precisou aprender a lidar com a pandemia de forma paciente. Há quase quatro meses na capital federal, o baiano veio em busca de uma vida melhor, mas foi surpreendido com as consequências da doença pouco depois. Em situação de rua, ele atualmente tem vivido com menos do que antes conseguia como catador de material reciclável, e depende grande parte do mês da solidariedade de outros cidadãos da capital.

Durante a quarentena, com os restaurantes fechados, o rendimento de recicláveis como latinhas e garrafas pet é escasso. “Até consegui emprego em Lava Jato e uns bicos como pedreiro, mas agora estou sem trabalho e sem receber nenhum tipo de auxílio. O que consigo com latinha, vendo para um rapaz que passa com um caminhão por aqui”, contou. Pouco acima da quadra 708 do Setor de Edifícios Públicos Norte (SEPN), ele vive em um barraco improvisado de madeira, com espaço para dois colchões de solteiro apenas. “Vamos vivendo do jeito que Deus dá pra gente viver.”

Saiba Mais 

Para se prevenir contra o coronavírus, a água para lavar as mãos vem da caridade do outro lado do muro em que escora sua atual habitação. Ali, depois do salto para o lote vizinho, uma torneira serve para a higienização das mãos e para a limpeza do corpo. “Eu não saio muito. É daqui para ali [ao fim da quadra] no máximo”, explica. A máscara veio de uma ação social feita na última semana, mas não há álcool em gel.

Entre uma saída e outra para buscar material para trabalhar, um radinho ajuda a entreter e encarar os longos dias. “Trabalho com tudo, corto cabelo, construção, jardinagem, tudo que tiver eu faço”, acrescentou.

Nas noites frias, uma fogueira é acesa para aquecer o corpo. A necessidade de ajuda é diária e, segundo Edson, os itens mais necessários no momento são roupas de frio, alimentos, e itens de higiene pessoal como sabonete e papel higiênico. “Não peço dinheiro porque não ajuda em muita coisa, mas qualquer ajuda é bem-vinda”, finalizou.

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