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Brasília

Separados por 6.400 km, pais batalham na justiça pela guarda dos filhos em meio à pandemia

Agressão e violência sexual foram o ápice na crise do casamento, que iniciou em 2008. Hoje, o homem mora nos Estados Unidos e a ex-esposa no Brasil

Olavo David Neto

26/06/2020 9h16

“Ele estava muito nervoso e eu fui deitar”, começa Gleyciane da Fonseca Sampaio, 36. “Quando ele foi para a cama, passou as pernas em volta das minhas e me segurou numa espécie de abraço. Eu sou muito magra e ele é forte. No primeiro apertão, senti meus braços estalarem; no segundo, uma dor muito forte nas costelas. Pensei que fosse morrer”, conta a psicóloga. A cena foi o ápice na crise do casamento iniciado em 2008, e que desde 2016 teve como cenário o pequeno subúrbio de Clark Summit, cidade norte-americana da Pensilvânia. Lutador de jiu-jitsu na juventude, Moisés de Souza Sampaio largou a então companheira, que se encolheu na cama. Pouco depois, relata Gleyciane, ele a estuprou.

O casal trouxe Y.F.S, 11, e H.F.S, 4, ao mundo, e o quarteto morava de improviso no porão da casa dos pais de Moisés nos Estados Unidos. Com a viagem dos sogros, ninguém a ouviria, já que as crianças estavam dormindo e a cidade é pequena e espaçada, conforme relatou ao Jornal de Brasília. Depois da violência sexual, conta a mulher, Moisés dormiu. Pouco depois, num raro descuido do marido com o celular, ela desbloqueou o aparelho e percebeu que havia mensagens direcionadas a ela, além de grupos dos quais ele não participava, na tela. “Ele colocou o [aplicativo] espião no meu celular”, relata.

A derrocada no matrimônio começara pouco antes. Representante de uma empresa brasileira de cadeiras motorizadas, Moisés se deslocou ao Brasil em meados do ano passado, e disse que iria, sozinho, a Pirenópolis, interior de Goiás. Depois, já na Argentina para um evento da companhia, enviou a Gleyciane uma foto num bar acompanhado de uma colega de trabalho. “Para fazer ciúmes”, disse, quando questionado pela esposa. Segundo ela, o cônjuge não a permitia saídas desacompanhadas. Sem falar inglês e sem amigos na cidade, de acordo com o relato, restou apenas a conversa em códigos com familiares, que compraram uma passagem a pretexto de férias para ela e as crianças.

Em junho de 2019, Moisés já estava novamente no Brasil a pretexto de um tratamento dentário. De Anápolis, onde os pais também tinham residência, avisou à companheira que ela só deixaria o solo norte-americano com passagem de volta comprada. “Não tinha como”, confessa Gleyciane. “Seriam quatro passagens de ida e volta”, lembra. Chegaram a um acordo, e quando desembarcou na terra natal ela deixou os filhos com o pai, que, apesar da ausência em função de dois outros empregos extras, “é amoroso com as crianças”. Dali, foi para Palmas, capital tocantinense, e se refugiou na casa da família. Quando recebeu os filhos de volta, comunicou ao marido que não voltaria aos EUA, e que daria entrada no divórcio.

Começou, então, uma saga. Já na América do Norte, Moisés entrou com pedido de guarda das crianças, acusando Gleyciane de sequestro internacional de menores. Com base na Convenção de Haia, de 1980, a justiça norte-americana concedeu, em outubro, a guarda provisória ao pai, além de emitir um mandado de Busca e Apreensão contra a mãe de Y. e H. Sem representantes e sem dinheiro, já que as contas conjuntas e toda a renda foram redirecionadas para deixá-la sem recursos, conforme conta a psicóloga, coube a ela pleitear uma audiência virtual com a juíza estadunidense, que, após ouvir a outra versão, retirou as acusações de roubo e sequestro, além de cancelar a Busca e Apreensão para recuperar as crianças.

Enquadrado

De acordo com o artigo 7º do Código Penal, crimes cometidos por brasileiros no exterior são puníveis em território nacional. Assim, a alegada tentativa de feminicídio e o suposto estupro cometidos por Moisés são aplicáveis na legislação do Brasil. Mesmo assim, o processo, que corre sobre segredo de Justiça na 1ª Vara Federal do Tocantins, seguiu. À reportagem, a advogada de Gleyciane, Blenda Lara, afirmou que houve comentários indevidos do advogado do autor em relação à Gleyciane à frente do membro do Ministério Público.

Segundo Gleyciane, fotos e conversas íntimas foram anexadas ao processo, numa tentativa de desmoralizá-la perante o juiz, o mesmo que, ainda conforme o relato dela, parabenizou a Moisés pela iniciativa de buscar a guarda dos filhos. A Advocacia-Geral da União (AGU), que representa o Estado brasileiro, determinou, com base na decisão favorável ao pai, o retorno das crianças – cujas avaliações psicológicas mostram certa refuta à imagem paterna – aos Estados Unidos, a despeito da pandemia do novo coronavírus. Após protesto da advogada, uma liminar concedida por outro tribunal cancelou a decisão da primeira instância de retorno das crianças. A mais velha, por sinal, está matriculada há cerca de um ano numa escola de Palmas.

Contactados, MPF e AGU não retornaram os questionamentos da reportagem. Moisés afirmou que manifestações públicas ficaria a encargo de Mark Martin, seu representante jurídico. Segundo o advogado, as acusações de Gleyciane são “difamações e mentiras”, e que todo o processo “foi feito dentro da legalidade”. Também questionou os relatos de Blenda Lara acerca de interlocuções fora de hora e lugar entre ele e a promotoria, além de classificar como “alienação parental” o resultado dos testes mentais realizados nos filhos do casal. Disse ainda que não teceria mais comentários “para preservar a imagem das crianças”.

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