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Brasília

Pacientes de lúpus reclamam de dificuldade em conseguir medicamento testado contra Covid-19

Anvisa chama atenção para o fato que medicamento só pode ser adquirido com receita médica

Redação Jornal de Brasília

01/04/2020 18h30

Gabriela Gallo
Jornal de Brasília/Agência UniCEUB

“Eu cheguei a ir em mais de 20 farmácias e minha irmã […] foi em várias outras. A gente rodou muito e não achava de jeito nenhum”, afirma a paciente brasilense Luiza*, de 32 anos, profissional de marketing, que necessita de usar a cloroquina para tratamento de lúpus. “Minha irmã foi em todas as farmácias da minha cidade, acho que são umas oito, e não encontrou. O desespero maior foi que, o representante das farmácias aqui do interior, disse que tinha zerado, não tinha mais em lugar nenhum. Fiquei ansiosa, chorando muito”, relatou a baiana Simone*, de Maragogipe (BA). Na capital do país ou no interior nordestino, um problema: o medicamento que faz parte do tratamento da lúpus ficou em falta. Isso porque o remédio está em estudos para futura utilização para combater os efeitos do coronavírus. Ainda não há conclusão científica da efetividade do remédio contra a Covid-19 e seu uso pode provocar risco à saúde quando não houver recomendação médica. 

No dia 19 deste mês, o presidente estadunidense Donald Trump fez um comunicado informando que a cloroquina foi aprovada pela FDA (Food and Drug Administration, a vigilância sanitária americana) numa tentativa de tratar o coronavírus. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, confirmou pouco tempo depois e propagou como se fosse cientificamente comprovado o sucesso da substância no combate ao Covid-19.  O pronunciamento do presidente em redes sociais, nas rádios e TVs foi criticado pela Sociedade Médica, e também não foi ratificado pelo próprio Ministério da Saúde.

Na última quarta-feira (25), ministério da Saúde, inclusive, aprovou o uso de cloroquina/hidroxicloroquina em casos graves de coronavírus. Estão sendo feitos diferentes estudos com esse medicamento numa tentativa de achar uma cura para o vírus. A hidroxicloroquina vem sendo testada junto com outros medicamentos como a azatioprina e vem apresentando sucesso. Entretanto, o medicamento ainda está em fase de teste para combater e não para prevenir.

Hidroxicloroquina é usada no tratamento de doenças como malária, artrite reumatoide, artrite juvenil e lúpus. Com a propagação da informação que esse medicamento previne contra algo que vem aterrorizando as pessoas em um período estável como este, pode se tirar a oportunidade de ter o medicamento quem prioritariamente precisa, especialmente os pacientes lúpicos.

A doença

O Lúpus é uma doença crônica de origem autoimune a qual pode ser dividida entre Lúpus Cutâneo e Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES). No primeiro caso, a doença se limita à pele enquanto que no segundo ela atinge outros órgãos do corpo. Doenças autoimunes são caracterizadas por produzirem excessivamente anticorpos que atacam o próprio sistema e, por isso, 90% dos atingidos são pessoas que menstruam. Isso acontece pelos altos níveis de estrogênio (hormônio sexual relacionado ao controle de ovulação), o qual é auto formador de anticorpos. Também justifica grande parte das pacientes terem entre 15 e 45 anos, média do período fértil antes da pessoa entrar na menopausa.

A causa da doença é multifatorial, desde fatores genéticos até exteriores – como a alta exposição ao sol (raios ultravioleta) e infecções virais ou medicamentos. Apresenta diversas manifestações como dores e inchaços nas articulações, manchas avermelhadas na pele, dor torácica ou dificuldade de respirar (estes por atingirem as membranas que envolvem os pulmões e o coração), dentre outras. 

Para conter e impedir essas manifestações de acontecerem, é usada a hidroxicloroquina, tanto em casos mais leves (como para prevenir a doença de se manifestar) quanto nos mais graves. O lúpus é uma doença que ainda não há cura, portanto o uso do medicamento deve ser mantido independente se ela está controlada ou não. Quando a doença não está controlada é necessário o uso de corticóides ou outros medicamentos a depender de cada caso. 

Portadora de lúpus, Luíza testemunha que, depois de muito tempo tomando (cerca de 9 anos), tentou passar pelo processo de ‘desmame’. Ou seja, quando é necessário diminuir a quantidade do medicamento usado porque o corpo se acostuma com a quantidade específica. “Ele [o médico] foi tentando diminuir a quantidade, mas meu corpo começou a sentir falta. Eu comecei a sentir muita dor, muito inchaço. Eu ‘travei’ as mãos, não conseguia fechá-las, ela ia até uma curvatura específica. Teve um dia que eu não consegui levantar da cama porque os meus joelhos não dobravam”, recorda a moça.

Simone, de Maragojipe (BA), contou o que sentiu quando deixou de usar o Reuquinol (nome popular da Hidroxicloroquina) quando faltou na farmácia de sua cidade por uns cinco dias “[…] Comecei a sentir muitas dores no tórax, mas eu não imaginava que seria por conta da falta do Reuquinol. Quando minha irmã trouxe e eu passei a usar, no primeiro dia, a dor já teve uma melhora bem grande, no segundo dia ela desapareceu”.

Edriana da Silva, 41 anos, moradora de Brasília, também relata os sintomas que teve quando passou quatro dias sem seus medicamentos “Eu fiquei mal e o que eu senti foi o inchaço nas juntas, eu tive muitas dores que eu não consegui fazer nada […]  quase não conseguia andar porque meus joelhos estavam muito inchados. Fiquei acamada até o dia de eu voltar a tomar os medicamentos novamente”. Entretanto, a brasiliense, que também tem fibromialgia em decorrência do lúpus, também precisa tomar prednisona e não tem certeza se seus sintomas foram pela falta de qual medicamento especificamente. 

Corrida desenfreada

Com o anúncio do presidente somados ao medo do Covid-19, muitas pessoas que antes não consumiam a hidroxicloroquina passaram a comprar em grande quantidade nas farmácias privadas, esgotando os estoques com velocidade. “Eu fui em várias farmácias e escutei ‘veio um cara ontem e comprou 3’, ‘veio outro e comprou 5’ “, conta Luíza quando procurou pelo medicamento em Brasília. Simone também não teve sorte na Bahia “As pessoas compraram e ficaram retraídas. […] na minha cidade, que eu moro em cidade pequena, eles sabem exato as pessoas que têm os problemas e precisam dessa medicação. Então eles já fazem o pedido com aquela quantidade”.

Luíza, por também ter nefrite lúpica (em consequência do lúpus, seus rins começaram a falhar), também toma imunossupressores então nunca deixa o remédio acabar para comprar mais. Além disso, uma de suas irmãs também tem lúpus e a outra artrite, então as três irmãs conseguiram dividir os comprimidos entre si. 

Simone teve mais dificuldade e teve procurou com a ajuda de familiares em vários lugares “Minha irmã falou pra umas 10 pessoas ou mais: meu irmão em Camaçari, o amigo dela em Lauro de Freitas, várias pessoas de Salvador e Feira de Santana. Ninguém conseguiu encontrar essa medicação pra mim nas farmácias”, lamenta.

Uma amiga dela doou 5 comprimidos e outra, 10. O irmão de Camaçari (BA) fez um pedido do remédio “Só que a menina só podia vender pra ele com a minha receita. Infelizmente com esse clima do coronavírus na minha cidade ninguém entra e ninguém sai, então eu não tive como enviar a receita pra ele”, ela lamentou. No fim ela conseguiu uma caixa com a tia através do sobrinho do marido em Salvador. “Como o carro da prefeitura ta indo pra Salvador levar só alguns pacientes crônicos, minha irmã pediu pro motorista e ele trouxe [a caixa] pra mim”.

Providências  

Para a obtenção do remédio, antes era necessário somente a receita médica comum sem retenção. Isso explica porque as farmácias de alto custo do DF não registraram falta do medicamento em março. Edriana Silva, Cilene Páscoa, de 44 anos, e Taís Bonifácio, de 47, todas diagnosticadas com lúpus, declararam em entrevista que recebem seus remédios nas farmácias de alto custo do DF. 

Após o esgotamento da medicação nas farmácias públicas, a Anvisa enquadrou dia 20 deste mês, a cloroquina e a hidroxicloroquina como medicamentos de controle especial. Agora, Receita de Controle Especial em duas vias passou a ser exigida e obrigatória na farmácia ou drogaria a retenção da primeira via da receita. A ação foi articulada entre a Anvisa e o Ministério da Saúde, sendo adotada para evitar que continuasse faltando nas drogarias medicamento para quem realmente precisa, em decorrência do coronavírus. 

A Anvisa disse que o medicamento não era enquadrado como controle especial porque não tinha o perfil farmacológico típico das substâncias controladas (como entorpecentes, psicotrópicos e outros). Ao ser questionada de como o estoque se esgotou tão rápido mesmo antes sendo um remédio de prescrição médica, a agência governamental respondeu que, ou as farmácias privadas venderam de forma irregular, ou as pessoas compraram com receitas já emitidas. “É importante destacar que a farmácia é obrigada a cobrar a apresentação de receita médica, seja a receita simples ou a receita controlada”, destaca.

Efeitos colaterais 

Na quinta-feira passada (26), o presidente da república fez uma transmissão ao vivo afirmando que o consumo da hidroxicloroquina não causa efeitos colaterais e que  “uns dez comprimidos, dá conta do recado”. Neste domingo (29) ele gravou um vídeo – o qual foi apagado pelo Facebook e Twitter no dia seguinte por propagar desinformação de alto risco às pessoas – afirmando o mesmo. “Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo o que é lugar”, anunciou o mesmo. 

O reumatologista David Pedrosa afirma que a automedicação em si é extremamente desaconselhável “Nesse caso em específico, a potencialidade de efeitos adversos por arritmias cardíacas, reações idiossincrásicas [particulares para cada indivíduo], alergias e outras torna essa opção um risco que supera muito o suposto benefício”. “Esse fato provavelmente não impactará de imediato os números da crise, mas a depender da gravidade da doença de base e o tempo sem acesso aos medicamentos, gerará um grande número de eventos indesejáveis nessa população”, reforça o profissional da saúde sobre pacientes de doenças crônicas.

Pacientes lúpicos que tomam o medicamento por necessidade já registram efeitos colaterais como problemas na vista. “Minhas vistas prejudicaram um pouco com o cloroquina, mas eu ainda tive que dar continuidade […] eu estava pedindo 20 cápsulas pra tomar 3 vezes na semana que foi o que o médico passou pelos problemas da minha vista” disse Cilene, que toma o remédio a 28 anos. Simone também passou por uma situação mais séria “Eu tive que fazer uma cirurgia de catarata, que já estava bem avançada por conta da medicação que eu faço tratamento”.

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