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Brasília

“O mundo digital requer uma nova ética”

Primeiro no plebiscito que ficou conhecido como Brexit e que levou a Grã-Bretanha a deixar a Comunidade Europeia e depois nas eleições nos Estados Unidos que elegeram Donald Trump presidente da República ficou conhecida a atuação da empresa inglesa Cambridge Analytica

Rudolfo Lago

15/10/2020 8h44

presidente do Sebrae-DF-Valdir Oliveira / Foto: Henrique Kotnick / Jornal de Brasíliafoto : Henrique Kotnick/Jornal de Brasília

Primeiro no plebiscito que ficou conhecido como Brexit e que levou a Grã-Bretanha a deixar a Comunidade Europeia e depois nas eleições nos Estados Unidos que elegeram Donald Trump presidente da República ficou conhecida a atuação da empresa inglesa Cambridge Analytica. Essa empresa invadiu dados de milhões de eleitores, traçou os seus perfis e conseguiu manipulá-los. A estratégia que maculou esses processos democráticos foi descoberta. A Cambridge Analytica não existe mais, foi condenada na Inglaterra e está sendo processada nos Estados Unidos. Os perigos, porém, que a empresa inglesa trouxe para a manipulação política valem também cada vez mais para o mundo dos negócios.

A pandemia da covid-19 acelerou ainda mais esse processo. Compras cada vez mais são feitas de modo virtual e as empresas e seus vendedores se adaptam a esse novo mundo. E podem ter da mesma forma acesso aos dados dos consumidores e manipulá-los. Esse será o tema do Inova Digital, evento que o Sebrae-DF organizará entre os dias 12 e 14 de novembro. Para esse evento, o Sebrae convidou Britany Kaiser. Ex-diretora da Cambridge Analytica, ela se arrependeu das suas ações. Sua delação é um dos pontos mais reveladores de como a empresa trabalhava. Somente ela confessa ter manipulado dados de mais de 80 milhões de eleitores americanos.

Britany foi convidada para o evento exatamente para contar os perigos de tais estratégias e como as pessoas devem se resguardar. Para os pequenos empresários, público alvo do evento organizado pelo Sebrae, como respeitar os limites éticos e a privacidade dos consumidores nesse novo mundo das relações digitais. Para falar sobre o Inova Digital e a participação de Britany Kaiser, o Jornal de Brasília ouvir o superintendente do Sebrae-DF, Valdir Oliveira.

O que será discutido no evento e que contribuição dará Britany Kaiser para o debate proposto?

O Inova Digital será um grande evento de discussão de marketing digital que o Sebrae do Distrito Federal irá promover. O evento começa no dia 12 de novembro e vai até o dia 14 de novembro. O objetivo é que a gente possa discutir marketing digital para os novos negócios. Porque o mundo mudou. E os negócios estão inseridos dentro desse novo mundo. Mas há uma coisa em especial que nos preocupa e que vem sendo muito debatido pelos atores que participam desse movimento, que é a questão da privacidade dos dados. Isso é muito importante.

Há algum tempo, um ex-agente da CIA, John Snowden, trouxe à tona esse debate, quando revelou que a agência de inteligência americana invadia a privacidade das pessoas, de autoridades do mundo inteiro para pegar dados, informações confidenciais. O Snowden deu esse primeiro alerta ao mundo. Acabou indo parar na Rússia, foi considerado traidor nos Estados Unidos. Agora, mais recentemente, esse debate retornou com muita força por conta de duas eleições.

Primeiro, o Brexit, o plebiscito na Grã-Bretanha para que deixasse a Comunidade Europeia, e as eleições de Donald Trump nos Estados Unidos. Trouxe à tona a atuação de uma empresa britânica, a Cambridge Analytica, que quebrou completamente a privacidade das pessoas, invadiu seus dados e fez com que essas pessoas mudassem seu comportamento para adquirir aquilo que eles queriam que fosse adquirido. De uma forma ilegal. Porque isso é uma forma ilegal de manipulação. O Facebook fechou essa possibilidade de atuação, mas o estrago já estava feito. E nós estamos descobrindo que o estrago foi feito no mundo inteiro.

E o risco de que aconteça de novo permanece, não é mesmo?

Esse debate é fundamental, porque os riscos que esse novo mundo traz é hoje a nossa grande preocupação. Se antes da pandemia da covid-19, nós já vivíamos assim, depois da pandemia, isso se tornou a grande realidade. O mundo digital é hoje o nosso mundo de relacionamento. Nós precisamos ter esse debate. Será que é correto invadir a vida das pessoas? Será que é correto invadir a privacidade das pessoas para, com isso, estimulá-las a consumir os nossos produtos? Será que é assim que os vendedores devem proceder? E é pensando nisso que estamos trazendo uma grande atração para esse evento que é a Britany Kaiser.

Quem é ela e o que ela contará no evento?

Ela foi analista, chegou a diretora, da Cambridge Analytica. A empresa hoje fechou. Foi condenada na Inglaterra. Está sendo processada os Estados Unidos. Ela tinha um lado comercial, mas enveredou para o lado político e influenciou a política no mundo inteiro. Nós vamos trazer a Britany Kaiser para conversar com a gente justamente quatro anos depois dos episódios que marcaram a atuação da empresa e quando nós estamos tendo novamente eleições nos Estados Unidos, seguramente muito mais controladas para que se evitem essas manipulações.

E também aqui, quando teremos eleições municipais e o risco desse fenômeno também pode se verificar. Mas se tudo isso implica cuidados no mundo da política, provavelmente também exige cuidados e uma nova ética no mundo dos negócios. Essa também é uma reflexão importante que poderá ser feita com a presença e com a descrição da experiência de Britany Kaiser?

Esse debate é importantíssimo, e é esse o debate que queremos trazer para esse evento. Precisamos ter limites éticos tanto no aspecto empresarial quanto no aspecto político. Mas o nosso foco aqui é o comercial, o empresarial. A gente vê que houve uma mudança no conceito de marketing, que é a Cambridge Analytica trouxe. Como se fazia antes? Se você queria divulgar um produto, via-se a melhor fotografia e os melhores argumentos para convencer a pessoa a consumir o produto.

Essa empresa trouxe um novo conceito: para que fazer esse esforço? É melhor a gente invadir dados, traçar perfis, alimentar esses perfis de forma a mudar o comportamento das pessoas, para que elas consumissem o seu produto. E, aí, eu não preciso maquiar o meu produto, trabalhar o meu produto, porque as pessoas vão consumir de qualquer jeito o meu produto. Isso é gravíssimo. Essa mudança conceitual ultrapassa o limite da ética porque faz você consumir aquilo que no fundo não queria consumir, mas não sabe disso. Porque é a tese é: “Vamos mudar o seu comportamento para que você consumir o meu produto”.

Como isso é possível?

Eles dão um exemplo de como conseguiam isso. A Britany Kaiser lançou um livro, que foi publicado também no Brasil. Se chama “Manipulados”, onde ela mostra que a criação da Cambridge Analytica foi baseada nessa mudança de conceito. O exemplo que ela dá é o seguinte. Digamos que você mora em um lugar em que há uma praia privativa. Se você simplesmente colocar uma placa dizendo “Praia Privativa”, o efeito pode ser pequeno. Mas se você colocar uma placa dizendo “Aqui, um tubarão comeu banhistas”, com medo as pessoas não vão entrar. Então, se muda o comportamento das pessoas a partir do medo para que as pessoas passem a reagir do jeito que você quer. Britany Kaiser relata que a Cambridge Analytica tinha dois grupos de profissionais.

Um de psicólogos comportamentais e outro de engenheiros de dados. Os psicólogos comportamentais construíam perfis psicológicos e como seriam trabalhados esses perfis. Os engenheiros de dados ajudavam na captura de dados para fazer esses perfis. Eles criaram muitos jogos, esses que constroem avatares, fazem diversas perguntas, na lógica trazida por esses psicólogos e traduzida por esses engenheiros de dados. A partir desses jogos, as pessoas não sabem, elas estão autorizando a captura de dados. E pelas respostas que elas colocam é que se começa a traçar os pefis psicológicos. Sabe quantas características eles conseguiam coletar de cada pessoa? Em média, 5 mil características.

Traçado o perfil psicólico, se começa a fazer um bombardeamento nas redes para que possam mudar o próprio comportamento da pessoa. Essa foi a estratégia utilizada pela Cambridge Analytica no mundo inteiro. A Britany chega a contar no livro “Manipulados” que quem tem o hábito de ler livros no e-book se consegue capturar a risada, conseguem saber em que página do livro você está rindo e o que provocou essa reação. Esse é o debate que queremos trazer para as pequenas empresas que vão agora entrar nesse mundo digital para que elas possam respeitar os limites éticos para que não se cometam essas barbaridades. Para que a gente não mude o comportamento das pessoas. Para que a gente respeite a individualidade das pessoas e não caia nessa armadilha daqueles que, na verdade, querem nos transformar em produtos.

O produto somos nós?

Se você conseguiu alguma coisa induzido pelas redes sociais, acredite: você é o produto. Porque você teve os seus dados vendidos a alguém que lhe estimulou a isso.

Como as pessoas poderão participar do evento?

Será tudo gratuito. As inscrições podem ser feitas pelo portal www.sebraeinovadigital.com.br. Através desse site, a pessoa faz a inscrição. Há ali informações sobre as palestras, tudo relacionada a esse evento. Nós queremos levar de forma inovadora para esse evento – e é um recorde – 10 mil pessoas assistindo às nossas palestrar e tendo a oportunidade de debater o marketing digital, sua importância para os negócios, a importância do canal para os nossos pequenos negócios, para que eles possam sobreviver no pós-pandemia, mas respeitando os limites éticos de quem quer viver neste novo mundo, para que não se cometam os crimes que foram cometidos e para que a gente possa ter relações mais saudáveis entre consumidores e empresas.

Porque se a gente fizer assim, nós teremos um mundo melhor para todos nós. E ninguém melhor que a Britany Kaiser para trazer para nós essa reflexão. Porque ela esteve no centro de tudo isso e hoje é uma ativista da necessidade de privacidade dos dados. Ela, mais do que ninguém, sabe o mal que fez.

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