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Brasília

Intolerância religiosa: no DF denúncias ainda não representam o tamanho da violência simbólica

Segundo especialistas, a mobilização pela escola pode ser uma saída para minimizar o preconceito

Aline Rocha

11/06/2019 14h22

Foto: Mariana Coutinho

Camilla Germano e Mariana Coutinho 
Jornal de Brasília/Agência UniCeub

No trabalho, na escola, em casa … a realidade dos praticantes de religiões, muitas vezes desconhecidas ou vítimas de preconceito pela maioria dos brasileiros, mostra a dificuldade que o país miscigenado e multicultural tem com as diferenças.. O que deveria trazer uma sensação de leveza e conexão espiritual se torna motivos de constrangimento e repressão. Essa foi a rotina por qual passou, ao longo da vida a aposentada Rosângela Maria dos Reis, 59 anos. Ela relata que o que era para ser um momento de conexão espiritual se tornou uma luta. Por isso, precisava fugir pela janela de casa para participar de grupos jovens espíritas kardecistas.

“Como vim de uma família tradicionalmente católica enfrentei vários tipos de problemas na família, só por ser espírita. Meu pai não aceitava que eu frequentasse as uniões espíritas. Então, a intolerância já começava em casa, mas aos poucos ele foi cedendo porque viu que não tinha jeito mesmo porque viu os trabalhos que eu fazia de caridade e ele foi aceitando e não teve mais como se opor”, afirma a bancária aposentada.

A aceitação do pai veio aos poucos mas, em outros momentos da vida, precisou esconder a religião para ser respeitada no ambiente de trabalho. “Eu comecei a trabalhar em uma empresa privada e meu chefe não aceitava a minha religião, e eu não tinha conhecimento disso. Começou com um perseguição simples, de me colocar para fazer trabalhos de xerox, buscar ternos na lavanderia e afins, mesmo tendo um office boy para fazer esse trabalho”. Muitas vezes ela era convocada para ocupar o lugar de secretária dele assim que saia do trabalho.

Ela diz que ficava além do meu horário, perdendo aulas na faculdade. “Quando finalmente consegui uma proposta para mudar de emprego, ele me puxou de lado e me contou que nunca aceitou o fato de eu ser espírita por ser católico. Eu argumentei com ele e disse que religião não deveria ser discutida. Foi quando pedi para sair do emprego e a conversa acabou ali”, revela.

Foto: Mariana Coutinho

“Só” 47 denúncias

Esse não é apenas um caso isolado. Dados do Ministério dos Direitos Humanos apontam que entre 2011 e 2018, um total de 47 denúncias de intolerância religiosa foram feitas apenas no Distrito Federal , uma média de 5,87 denúncias por ano. Mas o número deveria ser bem maior. porém o sofrimento, em geral, ocorre em silêncio. Nenhuma das entrevistadas para esta reportagem recorreu à polícia para denunciar a intolerância.

Especialistas entendem que o discurso do ódio religioso, atualmente, está impregnado no cotidiano do país e vem sendo “naturalizado” como se fosse um fenômeno destituído de violência. Na maioria dos casos, a demonização das religiões afro-brasileiras e a atribuição de todos os males da humanidade à elas incita brasileiros a agredirem outros. Além disso, violam a dignidade humana e ameaçam a paz social.

A intolerância religiosa manifesta-se por meio de ofensas, humilhações, constrangimentos, interrupção de culto, discriminação no espaço escolar e no trabalho. É crescente o número de casos de agressões físicas e depredações de templos das religiões afro-brasileiras. Dados do mesmo Ministério de novembro de 2017, apontam que a cada 15 horas, um templo afro-religioso sofre algum tipo de ataque no Brasil.

O advogado Hédio Silva Júnior, mestre em Direito Processual Penal e doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Coordenador Executivo do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (IDAFRO), afirma que o Brasil é um país plural com uma rica geografia de identidades étnicas, culturais e religiosas, sendo que somente 10% dos brasileiros são ateus ou agnósticos.

“Os fiéis das denominadas religiões minoritárias enfrentam diariamente o discurso do ódio religioso propagado pelos meios de comunicação social e estão sujeitos a agressões verbais, físicas e inclusive depredações em templos, especialmente nos templos afro-religiosos”, ressalta o especialista.
Cada religião sofre um tipo de discriminação. Grupos de convicção filosófica (ateus, agnósticos, etc.) sofrem discriminação por são vistos como hereges; adventistas do Sétimo Dia sofrem preconceito porque guardam o sábado e não o domingo; testemunhas de Jeová, judeus e muçulmanos sofrem discriminação no Brasil.

O advogado afirma que por serem a minoria no país, os fiéis das religiões afro-brasileiras constituem o alvo predileto da intolerância religiosa. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a religião Umbanda e o Candomblé representam apenas 0,3% da população brasileira.

Diariamente, as redes sociais registram casos de intolerância, especialmente contra as religiões afro-brasileiras. Nos últimos anos, foram sido criadas delegacias especializadas em crimes raciais e delitos de intolerância.

Medo

A economista Ana, que não quis se identificar para não sofrer represálias, conta como age no ambiente de trabalho. “Eu sinto intolerância porque muitos colegas neopentecostais acreditam que as religiões africanas são demoníacas. Hoje para poder conviver melhor com a minha equipe eu me intitulo católica”, relata. Como ocupa um cargo de coordenação Ana preferiu não tomar nenhuma atitude para com relação os colegas pois teve medo de ser considerado um caso de assédio.

Esse é apenas um dos casos de intolerância sofridos pela Mãe de Santo de um dos centros de Umbanda do DF. Desde que sua mãe faleceu, ela se tornou líder do centro. O cargo no centro é passado de geração a geração e o filho de Ana será o próximo. Apesar disso, ele também precisa esconder a religião no local de trabalho por causa do preconceito.

O advogado civil, Igor Jaime, explica que empresas não podem contratar pessoas de uma religião específica, restringindo outras. Ele ressalta que o procedimento a ser adotado pela vítima de intolerância religiosa é primeiro ir na delegacia de polícia e fazer um boletim de ocorrência contra a pessoa que agiu de forma preconceituosa. Desse modo, vai ser instaurado um procedimento dentro da delegacia que vai apurar o fato. O preconceito sofrido pelos funcionários de uma empresa é considerado discriminação, o que gera danos morais. Com isso, a pessoa pode procurar a justiça do trabalho e ser indenizada.

O professor Hédio SIlva ainda ressalta que é importante ter provas na hora da denúncia. “É essencial que as pessoas gravem as cenas, registrem em áudio, vídeo, fotos, anotem nomes, placas de veículos e se cerquem de testemunhas para que se possa produzir provas que auxiliem na condenação dos discriminadores e racistas”, pontua.

Budismo

A influencer Laryssa Schneider, 20, é a terceira geração de praticantes de Budismo na família e conta que sente um pré-conceito da sociedade com a religião. “O Budismo tem muitas ramificações e ainda há um grande estigma a respeito. As pessoas cobram posturas daquele budismo que é mostrado na televisão, muitas vezes idealizado, sem muita base a respeito”, comenta.

Quando era criança, ela ainda explica que constantemente os pais eram chamados à escola e escutavam que não era correto que Laryssa fosse budista. “Era forçada a realizar orações católicas, me induziram a idas à igreja. A minha infância no que diz respeito à minha religião foi muito sofrida, as crianças riam de mim e me excluíam, diziam que eu era do demônio”, desabafa. Na época, os pais dela não entraram com nenhuma ação jurídica, mesmo eles buscando, sem sucesso, providências na escola. Laryssa relata também que com o tempo as coisas melhoraram e hoje não enfrenta tantas perseguições.

“O que mais chama a atenção da violência religiosa é o fato de que a religião deveria ser parte da solução e não do problema. Uma vez que as religiões, mesmo as mais diversas, em grande medida compartilham uma experiência comum de uma realidade transcendente, seria de se esperar que elas convergissem mais ao invés de divergirem. Por outro lado, uma vez que a principal mensagem da religião cristã é o amor ao próximo, é absurda a ideia de tratar com violência alguém que não é cristão só porque não compartilha da própria crença. Violência de cristãos contra não cristãos evidencia uma má compreensão do próprio cristianismo”, afirma Agnaldo Cuoco Portugal, professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB).

“Mercadoria”

Doutor em filosofia da religião pela Universidade de Londres King’s College, Agnaldo Cuoco explica o que leva as pessoas a não respeitarem outras religiões. “Essa pergunta não é fácil de responder, mas algumas hipóteses são bem plausíveis. Por um lado, a diferença, às vezes, incomoda, pois é vista como uma ameaça a um conjunto de crenças e modos de vida que falam de aspectos centrais da vida”. O pesquisador entende que a religião é muito importante para o indivíduo , mas a diversidade acaba sendo vista como ameaçadora.

Ele considera que na época atual as pessoas são vistas como mercadoria. Nesse sentido, a ‘outra religião’ é vista como concorrentes no ‘mercado’. “Se o poder público não regula esse mercado, uma estratégia que se mostra para alguns grupos é a de ‘eliminar a concorrência’. Por fim, e talvez seja a hipótese mais relevante, o Brasil é hoje uma sociedade violenta segundo vários aspectos e o desrespeito religioso é apenas uma faceta dessa preocupante e disseminada violência social que temos entre nós atualmente.”, explica. O professor considera que uma das forma de diminuir esse preconceito é a mobilização pela educação escolar, pela publicidade e pela propaganda, e aperfeiçoar a política cultural e a indústria do cinema para se comprometerem com a promoção da cultura de paz entre todas as convicções filosóficas e crenças religiosas. “O Estado tem obrigação jurídica de assegurar que todos esses segmentos possam se expressar sem estarem sujeitos a qualquer forma de violência”.

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