Menu
Brasília

E tudo se resolveria com um “por favor”

Motoboy conta ao Jornal de Brasília os detalhes da discussão que teve com policial militar em condomínio de Taguatinga e os transtornos causados a ele

Larissa Galli Malatrasi

23/01/2020 6h40

Entrevista com motoboy envolvido em desentendimento com policial militar. Davi motoboy. Foto: Vitor Mendonca/Jornal de Brasilia Data: 22-01-2020

“Eu sei que não estou certo, mas ele também não está”

Davi revela que foi pressionado a não levar adiante queixa contra PM que o agrediu

Após ser solto na manhã de ontem, o motoboy Davi José Trindade Santos, de 21 anos, recebeu a reportagem do Jornal de Brasília em sua casa e contou o drama que vivenciou nos últimos dias. “Uma situação muito chata e constrangedora”, desabafa o rapaz. No último domingo (19), Davi se envolveu em uma discussão com um policial militar, que o agrediu; na segunda-feira, foi preso acusado de usar uma moto clonada para trabalhar.

Davi contou detalhes do acontecimento. Segundo ele, ao chegar para fazer a entrega de comida no edifício Carpe Diem, em Taguatinga, ele não viu placas que o impediam de estacionar em frente à portaria do local. “Optei por deixar perto da guarita porque estão acontecendo muitos roubos de moto, e, naquele local, o porteiro poderia ficar de olho para mim”, relata. “Chegando na recepção, o porteiro disse de forma muito tranquila que não poderia estacionar ali, mas não pediu para eu tirar a moto. Eu disse que seria muito rápido porque a entrega já estava paga: era só subir, entregar, descer e sair”, continua.

Mas, assim que desceu do apartamento, Davi percebeu que havia outra pessoa com o porteiro. Quando estava colocando a capa de chuva para sair, o homem se aproximou e falou para tirar a moto. “De forma muito rude, ele falou para eu tirar a moto dali. Eu disse que já ia tirar, mas que, como ele estava sendo muito grosseiro, falei para ele pedir por favor”, relata. “Então, ele disse que eu ia tirar a moto ‘por bem ou por mal’, e aí foi quando me senti ameaçado e fiquei mais irritado”, conta.

De acordo com Davi, logo depois o policial à paisana chegou e não se identificou como agente de segurança — apenas pediu que ele tirasse a moto do local. “Achei isso errado. Existe uma hierarquia, poderiam ter chamado o síndico do prédio, o Detran ou a polícia. Eu, já chateado com o dia intenso de trabalho, fiquei decidido a só sair quando me pedissem por favor”, conta. O motoboy ainda disse que o policial falou que “aqui não tem porra de por favor, não”, sacou a arma e o chutou. “Quando comecei a gravar, ele me enforcou. Eu sei que não estou certo, mas ele também não está”.

Foto: Vitor Mendonca/Jornal de Brasilia

Segundo o relato de Davi, o militar chamou “colegas dele da PM” para resolver o caso. As testemunhas aconselharam o motoboy a ir à delegacia para registrar a ocorrência. “Eu não queria. Favelado mexer com polícia nunca dá certo. Eu já sabia que não ia dar em nada, porque o PM tem muito mais poder que eu. Mas não imaginava que ia dar essa repercussão toda. Me ofereceram até advogados. No calor do momento, eu acabei aceitando ir para a delegacia”, conta. Ele também revelou que o policial que o agrediu teve a oportunidade de subir no prédio e guardar a arma em casa antes de ir — mesmo já estando com documento em mãos.

Na delegacia, Davi contou que o delegado perguntou três vezes se ele queria mesmo seguir com o caso. “Eu me senti pressionado a não seguir em frente. Mesmo assim, eu disse que iria”, relatou. “O delegado chamou o policial para tentar um acordo, mas ele só ficou olhando com olhar bravo e perguntou mais uma vez se eu queria seguir com o caso. Na hora disse que sim, mas eu não queria nem ter feito o boletim de ocorrência”, afirma.

Seis viaturas para apreender moto

Já em casa, na madrugada de segunda-feira, Davi recebeu uma mensagem que dizia “tic-tac”, como um relógio passando o tempo. Horas depois, a polícia chegou na casa dele. “Mais ou menos umas seis viaturas pararam aqui na porta da minha casa. Foi muito constrangedor, uma vergonha, por isso estou me sentindo tão mal”, desabafa. “Falaram que se eu não tirasse a moto, eles iam invadir, mesmo sem o mandado do juiz”, completa.

Davi conta que levou a moto para fora de casa e mostrou tudo para os policiais. “Chassi, placa. Tudo em perfeito estado”, garante. “Quando eu comprei a moto, não havia nenhum indício de que era clonada. Dois policiais até afirmaram, na porta da minha casa, que a moto não apresentava irregularidades. Já fui parado em quatro blitze com ela — uma, inclusive, na semana passada — e os policiais sempre cumpriam os procedimentos e me liberaram. Mas desta vez, depois da confusão, eu fui preso, levaram a moto para a delegacia e eu não pude nem chegar perto dela para ver o que eles estavam fazendo.” Segundo Davi, ele comprou a moto num grupo do Facebook e conferiu a placa. “Eu verifiquei tudo, não ia pagar R$ 4,5 mil sabendo que eu poderia ser preso”, afirma.

Jovem tem vontade de ir embora

Davi José já teve passagem pela polícia por receptação e desacato, mas estava decidido a mudar de vida. Ele trabalhava como motoboy em uma empresa de entrega de documentos durante a manhã e pela noite como entregador de comida por aplicativo. “Trabalhei fichado como gari e pizzaiolo, depois voltei a ser motoboy, que é o que eu mais gostava de fazer. Trabalhava todos os dias das 7h às 0h, eu sou um trabalhador, estava decidido a mudar. Agora estou de mãos atadas”, lamenta.

O motoboy usava o dinheiro que ganhava nos empregos para ajudar nas contas e tinha planos de comprar uma nova casa para a mãe. Atualmente, ele mora junto com ela, mas já morou sozinho por um tempo. “Sou muito reservado, gosto da minha privacidade, mas vim morar com a minha mãe depois que meu irmão morreu, há aproximadamente um mês. Queríamos sair daqui porque estamos recebendo ameaças por denunciar quem matou meu irmão”, afirma. “Agora, minha vontade é ir embora para algum lugar que ninguém me reconheça”.

Davi revelou que sempre foi muito independente e trabalhador. “Gosto de ter meu dinheiro e desde pequeno eu sabia que minha mãe não tinha condições. Eram seis filhos, nunca foi fácil para ela e agora está sendo mais difícil ainda: perdeu um filho e está passando essa vergonha toda”, desabafa.

A moto era o instrumento de trabalho de Davi. De acordo com o rapaz, a ideia agora é esperar a poeira baixar para retomar a vida. “No momento, não tenho condicionamento físico para trabalhar. Onde eu chegar, eu vou ser reconhecido, e isso é muito chato. Agora, prefiro ficar dentro de casa sem contato com ninguém”, diz.

Davi salientou que “um simples ‘por favor’ resolveria tudo”. A sensação dele foi que o policial “simplesmente se sentiu superior e achou que não poderia pedir uma favor para um favelado”. Ele aguarda novidades sobre a investigação da conduta do militar. “Gostaria que ele fosse punido. Eu até entendo que a situação pode ter ficado tensa e ele pode ter agido de cabeça quente, mas todo policial é treinado para lidar com esses casos e ele não podia ter feito isso fora do horário de serviço”, finaliza.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado