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Brasil

Escola de São Paulo cria programa de bolsas exclusivo para crianças negras e indígenas

A escola arcará com metade do custo das bolsas, que, além das mensalidades, incluirá material escolar, uniforme, transporte, passeios pedagógicos e alimentação

Redação Jornal de Brasília

29/10/2020 12h35

ÉRICA FRAGA E ISABELA PALHARES
O Vera Cruz, escola privada tradicional de São Paulo, lançou com um grupo de mães e pais do colégio um programa que concederá bolsas para crianças negras e indígenas a partir do próximo ano letivo.

Batizada de Projeto Travessias, em 2021 a iniciativa beneficiará 18 crianças de cinco anos, que estarão concluindo o ensino infantil. Segundo a direção do colégio, 24 horas após o lançamento, nesta segunda-feira (26), 30 famílias já haviam se inscrito para o processo seletivo.

A escola arcará com metade do custo das bolsas, que, além das mensalidades, incluirá material escolar, uniforme, transporte, passeios pedagógicos e alimentação. Os outros 50% terão de vir da contribuição de famílias com filhos na escola e eventuais doações externas. No ano que vem, a estimativa é que o financiamento necessário – além da parte da escola – será de R$ 502 mil.

Se faltarem recursos em 2021, o colégio cobrirá a diferença necessária para as primeiras 18 bolsas. Outro compromisso assumido pelo Vera Cruz é que, independentemente do rumo do projeto, todos os alunos que entrarem no colégio pelo Travessias terão suas bolsas garantidas até o fim do ensino médio.

Mas, a partir de 2022, o número de novos beneficiários dependerá do montante arrecadado pela associação sem fins lucrativos formada pelas famílias que coordenam o projeto junto com a escola para angariar as doações.
A intenção do grupo é ir atrás de empresas, instituições e ex-alunos para garantir a sustentabilidade do Travessias.
“Nós estamos otimistas. O programa foi lançado na última segunda-feira e já temos mais de 50 famílias doadoras da comunidade de pais”, diz a advogada Roberta di Ricco Loria, que tem três filhos no Vera e foi uma das idealizadoras do programa.

Segundo a direção da escola, além de 56 doadores já confirmados, há outras dezenas de candidatos que manifestaram a intenção de financiar a iniciativa. Regina Scarpa, diretora pedagógica do colégio, diz que o projeto nasceu de uma discussão iniciada no ano passado, quando os pais manifestaram insatisfação com a falta de diversidade racial na escola.”Discutimos e procuramos muitas referências sobre o assunto porque nossa preocupação era não ter uma ação assistencialista. Queremos incluir essas crianças de forma saudável e ética.”

A meta do programa é manter a entrada de 18 novos bolsistas no ensino infantil anualmente, garantindo que, conforme esses estudantes avancem no ciclo escolar, todas as turmas do colégio tenham de 10% a 20% de beneficiários.

Segundo cálculos da escola, isso levará o Vera Cruz a ter 270 estudantes com bolsas concedidas pelo critério racial em 13 anos.

No final desse período, se as metas de inclusão forem atingidas, o custo do programa – sem incluir a contraparte da escola – se estabilizará em torno de R$ 7,8 milhões (a preços de hoje) anuais. Essas contas são conservadoras, segundo o site do Travessias, e estimam que 80% das bolsas concedidas serão integrais e 20% parciais.

O edital para os candidatos do próximo ano estabelece que até metade das bolsas poderão ser parciais, dependendo do perfil socioeconômico dos beneficiários. Além do critério racial – que se baseará na autodeclaração dos responsáveis pelas crianças -, será considerado um limite de renda per capita.

Famílias com rendimento mensal por integrante de até R$ 1.558,50 poderão solicitar bolsa integral. Para aquelas cuja renda per capita chegue a R$ 2.337,50, o benefício será de 75%. E, no caso de uma renda per capita de até R$ 3.117, a bolsa será de 50%. Outros fatores que serão considerados na seleção é a presença de irmãos na escola e o tempo de transporte público da casa do aluno até o colégio.

A coordenação diz que também haverá um componente subjetivo na avaliação dos candidatos, considerando, por exemplo, a percepção da escola em relação ao engajamento da família com a educação dos filhos.

Embora o movimento antirracismo do Vera tenha começado em 2019, o debate entre pais e a direção da escola ganhou fôlego em meio a uma recente onda de pressão de famílias por maior diversidade nas escolas privadas de São Paulo, após a morte do americano George Floyd virar um símbolo da luta contra o racismo estrutural.
A pauta desses pais e mães – que, além dos grupos de suas respectivas escolas, formaram um movimento geral que engloba famílias de vários colégios – é ampla.

Além do aumento no número de funcionários e alunos negros, eles demandam que os currículos abordem a história africana e a contribuição dos negros para áreas como ciências e artes de forma mais profunda. Outro pedido é por um esforço maior das escolas para conscientizar pais, funcionários e alunos sobre os mecanismos que levam à perpetuação do racismo estrutural.

Segundo especialistas, pautas que não abranjam todos esses aspectos – seja em escolas ou em empresas que têm adotado ações afirmativas – correm o risco de não ir além do assistencialismo.

A comunicadora Deh Bastos, criadora do canal Criando Crianças Pretas e integrante do movimento “Escolas Antirracistas”, é uma das vozes que tem feito alertas sobre esse tema. Embora avalie como importante iniciativas de concessão de bolsas, como a do Vera, ela ressalta que é preciso um olhar mais amplo sobre outras questões dentro dos colégios. “Vejo com preocupação essa situação de combate ao racismo como se fosse altruísmo. Diz muito sobre a nossa hierarquia racial e não resolve a estrutura. É preciso que haja outras mudanças, que haja um olhar para o corpo docente, a direção, o material didático que ela apresenta aos alunos”, diz.

Bastos afirma que a inclusão dos alunos negros dentro de uma estrutura escolar tradicionalmente branca, com poucos professores e coordenadores negros, também a preocupa. Em reportagem recente, a Folha mostrou que uma em cada dez escolas privadas da capital paulistana não tem professores negros. Entre as que têm, a média é de 20%.
O site do Travessias aborda a questão da baixa diversidade na escola:
“A quase total ausência de negros no Vera afeta uma educação completa dentro das salas de aula, e restringe o diálogo entre diferentes realidades sociais, econômicas e culturais”, diz um trecho da seção de “perguntas frequentes”. Scarpa ressalta que o processo seletivo de contratação de professores para o próximo ano foi alterado para receber mais indicações de profissionais negros.

O projeto também terá o acompanhamento de professores e especialistas dos 5 cursos de pós-graduação do Instituto Vera Cruz, ligado ao colégio e voltado para a formação docente. “Sabemos que é um projeto com muitos desafios sociais, emocionais, afinal, vão espelhar mais de 500 anos de uma branquitude cheia de privilégios que construiu esse lugar.”

Outras escolas têm programas de bolsas em Sao Paulo. Mas o critério para concessão costuma ser social. Além disso, em algumas delas, os beneficiários formam turmas separadas dos alunos pagantes.

As informações são da FolhaPress

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