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Brasília

Comediantes valorizam humor mesmo em dias de pandemia

O humor não entrou em crise

Agência UniCeub

31/10/2020 19h00

Daniella Belchior
Jornal de Brasília/Agência UniCEUB

“Foi a elite que trouxe esse vírus… Pobre quando viaja, o máximo que traz é um queijo, um doce de leite, umas ‘coisa’ feita à mão pros familiares…”.

“Como você fala: acungel, auquingel ou aucongel?!” 

“No Brasil, até o coronavírus começa depois do carnaval”.

Como falar de humor sem fazer humor? Onde está a graça na pandemia? Em meio à mudança na rotina da população mundial e ao cenário caótico e desesperador ocasionado por ela, há espaço para o humor? Difícil responder as perguntas. No entanto, é possível buscar respostas a partir da análise do papel social do humor.

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A perspicácia e o olhar do humorista se ampliam em tempos difíceis. O cotidiano, fonte de eterna inspiração, mostra-se um ambiente fértil para criação de histórias, piadas e muitos memes. A criatividade se potencializa, não pela tragédia humana em si, a qual também afeta a quem vive do humor, mas especialmente pelo aprofundamento das questões sociais, ou seja, de todos os conflitos existentes na nossa realidade.

Fazer piada de tudo é uma característica peculiar do nosso povo. Segundo pesquisa sobre o comportamento do brasileiro nas redes sociais, realizada no período de 15 de janeiro a 27 de fevereiro pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV), verificou-se que o Brasil apareceu em quarto lugar como o país que mais comentou sobre a pandemia no Twitter. A pesquisa ainda apontou que 34% das publicações nessa rede tinham caráter irônico, com piadas e associações ao carnaval. Mas, afinal, onde está a graça na pandemia? Três humoristas responderam esse questionamento, considerando a experiência de vida e percepção do momento.

O brasiliense Lucas Moll acredita que a graça está na mudança no modo de se relacionar. Nesse contexto, surgem várias situações que provocam o riso, exceto as que envolvam perdas humanas. Adriana Nunes, da companhia de comédia Os Melhores do Mundo reconhece a dificuldade do momento, mas, como a pandemia e o isolamento são inevitáveis, tem se reinventado. “A graça está no desafio, na possibilidade de experimentar o novo, de se reinventar e nas situações cotidianas”. O cearense Dudé Torres diz que a pandemia em si não é motivo de graça. No entanto, sinaliza que as atitudes grotescas do presidente Jair Bolsonaro, a crise política e a ingenuidade das pessoas são fatos que se transformam em piada.

Papel social do humor   

Para o ator e humorista cearense Edivaldo Cardoso, a comédia surge a partir de uma “visão atravessada da realidade”. Ou seja, a graça estaria justamente em “ver o ridículo nos comportamentos, nas atitudes dos políticos, no dia-a-dia dentro de casa com esposa e filhos”. Edivaldo também é roteirista e diz que, neste momento de crise, o processo criativo tornou-se apurado. Isso ocorre porque tem lido mais e estado atento aos acontecimentos. Os comportamentos também são fontes de inspiração para o humorista e, na pandemia, eles têm se evidenciado, principalmente, nos cuidados exagerados contra o vírus.

Ele afirma não ter tido dificuldade em escrever peças e roteiros durante o isolamento social, pois, além de ter mais tempo livre, acha relevante retratar o momento que vivemos, sob a ótica do comediante. Inclusive, ressalta que uma das peças já escritas nesta quarentena, de título provisório As quarentonas, foi inspirada em mulheres comuns – duas amigas “quarentonas”- que dividem o apartamento durante a pandemia. Nesse cenário, o humorista acredita que se desenvolvem diversos conflitos com os quais muitas pessoas irão se identificar. “Dessas coisas pode ser vista graça e eu tenho certeza que, quando tudo passar, iremos rir muito disso tudo. Lógico, respeitando a seriedade das perdas”.

A psicóloga e especialista em psicodrama Marisa Becil ressalta a importância do papel do humor em tempos de crise. “Existem várias formas de lidar com o estresse proveniente das consequências da pandemia e da realidade difícil do presente com tantas perdas de vidas humanas, tais como exercícios físicos, meditação e humor. Para combater o hormônio do estresse, o cortisol, nada melhor do que uma boa gargalhada”, afirma.

Questionada sobre a importância do humor no contexto da pandemia, a psicóloga vê como algo benéfico para a saúde mental, desde que não seja ofensivo. “O humor é uma maneira positiva de lidar com o estresse oriundo da pandemia. A criatividade, sem ser ofensiva à dignidade humana, por meio de piadas e memes, pode ser usada a favor de um ambiente menos danoso ao nosso equilíbrio biopsicossocial”.

Humor que se reinventa

Lucas Moll na peça “Como seria se tudo fosse como é” (Foto: Guilherme Kardel)

Segunda-feira, 4 de maio. Às 14h15, realizo a chamada por vídeo pelo Whatsapp. Do outro lado, o ator, produtor e humorista Lucas Moll me aguarda para iniciarmos a entrevista. O sobrenome, curto e sonoro, herdou da mãe Giselle Moll e resolveu adotá-lo como nome artístico. Há pouco mais de um ano, o brasiliense foi morar em São Paulo para concretizar alguns projetos na carreira solo. Durante a conversa, um fato chamou a atenção. Indagado sobre como se descobriu no humor, Lucas relata que, por volta dos 14 anos, viveu uma fase briguenta. Na época, morava em Salvador e adotou uma postura “marrenta” para se proteger do processo de bullying que sofria no colégio por conta da baixa estatura. O fato, por si só, já seria uma piada pronta, porém, mexeu muito com o emocional e, segundo o próprio Lucas, a situação foi um divisor de águas na vida dele.

Ao voltar para Brasília, repetiu o ano escolar e estava ansioso. Mas, aos poucos, começou a mudar a postura reativa e passou a se destacar em apresentações culturais do colégio. Na 8ª série, foi transferido para uma escola administrada por freiras. Nesse momento, percebeu que “fazer graça era melhor que bater nas pessoas”. Assim, tornou-se piadista e fez amigos. Enquanto descreve a situação, Lucas desvia o olhar, faz uma pausa e sorri ao relembrar o quanto o contato com o humor foi importante e hoje se tornou a principal fonte de renda. Ele é especialista em stand-up comedy. No entanto, devido ao isolamento social forçado, teve de se reinventar, o que o levou a explorar bastante as redes sociais, intensificando ainda mais o processo criativo.

Nada aconteceu por acaso na vida de Lucas. Inevitavelmente, suas escolhas o levariam a se tornar o artista reconhecido na capital federal. A primeira experiência com teatro ocorreu no colégio aos 17 anos. Ele resolveu atuar na produção de cenários e figurinos para adquirir experiência e incrementar o portfólio, já que sonhava em ser designer. Entretanto, quando um ator faltou à peça, ele o substituiu e, mais uma vez, seu destino se redefinia. A partir disso, sentiu imenso prazer em atuar. A formação teatral ocorreu, de fato, junto à companhia de comédia Setebelos, da qual é um dos fundadores. O humorista ressalta que alguns profissionais foram essenciais no ensino de técnicas teatrais e de stand-up comedy, como Hugo Rodas e Cláudio Torres Gonzaga.

Formado em design gráfico, o humorista chegou a cursar Publicidade e Cinema. No entanto, o chamado para o teatro foi mais forte e optou por se dedicar exclusivamente às artes cênicas com ênfase no humor. Ele se descreve como uma pessoa muito criativa e quando lhe pergunto como se dá o processo de criação, o comediante afirma que sempre busca se reinventar. E, nessa quarentena, houve uma exigência maior por isso. Ele acredita que o fato de se conectar com as coisas que gosta de fazer desperta a criatividade. Hoje, além dos vídeos que ele mesmo roteiriza e edita para o Instagram e Tik Tok, Lucas Moll atua em outro projeto relacionado à cultura nerd e apresenta o talk show Comedyflix pela rede social de um shopping de Brasília.

“O humorista não é só um entregador de piadas, mas também um curador de assuntos”. Ou seja, fazer humor não é apenas contar piadas, mas sim realizar ampla pesquisa sobre diversos assuntos e adequá-los ao perfil do público. Ele cita, inclusive, que por vários anos fez humor baseado em noticiários e política, o que propiciou diversificação de conteúdo. No entanto, o fato de consumir muitas notícias começou a lhe trazer “mais ansiedade que libertação” e, assim, repaginou os espetáculos. A readequação dos shows coincidiu com a ida para São Paulo e os aspectos cômicos da mudança foram retratados, agradando demasiadamente o público.

Lucas Moll afirma que ser humorista também requer responsabilidade. Ele acredita ser possível fazer humor com tudo. Inclusive, mencionou o filme Jojo Rabbit – vencedor do Oscar 2020 na categoria roteiro adaptado – o qual satiriza o fanatismo provocado pelo nazismo. Sobre o panorama político atual, Lucas Moll diz que ele não lhe inspira. “Estamos chegando à beira do absurdo, da censura”. Hoje, foca no humor de entretenimento, em que busca tranquilizar o espectador e tirá-lo, ainda que por pouco tempo, de uma realidade muitas vezes pouco agradável.

Acerca das dificuldades enfrentadas na pandemia e a exigência de se reinventar, Lucas afirma que já vinha se preparando para os desafios que, porventura, poderiam surgir. O primeiro deles foi o cancelamento de espetáculos. O fato, por si só, já lhe gerou prejuízo financeiro. Além disso, como produtor, teve de adiar um grande evento previsto para o mês de abril, o que afetou a vida de outros profissionais envolvidos.

Mesmo diante de uma perspectiva desanimadora, Moll conseguiu fechar parcerias para atuar no ambiente digital. E afirma que o isolamento social propiciou mais visibilidade ao seu trabalho. No entanto, lamenta que muitos colegas do stand-up comedy não tenham tido oportunidades e condições dignas de trabalho, pois é complexo fazer shows de humor por meio de lives.

Versatilidade feminina 

Adriana Nunes interpretando Micalatéia (Foto: Nick Elmoor)

A atriz, diretora e humorista Adriana Nunes tem se reinventado nesta pandemia. Poucos dias antes de conceder a entrevista, concluía o projeto para o público infantil intitulado Violinha Caipira, em parceria com o irmão, o músico Marcello Linhos. Ela conta que o início do isolamento gerou um pouco de insegurança, pois os espetáculos da companhia de comédia Os Melhores do Mundo, da qual é integrante e sócia – fundadora, tiveram de ser cancelados. Os atores da companhia optaram por não realizar lives durante a pandemia. No entanto, resolveram postar conteúdos nas redes sociais, o que atraiu cerca de 100 mil novos seguidores.

Mesmo sem cachê, Adriana não se abalou e tratou logo de inovar o trabalho e criar novas possibilidades para si. Uma delas foi a concepção do canal Hiper Criativimusiquilivro no qual ela e o irmão contam histórias, cantam e produzem oficinas de criatividade para as crianças se distraírem durante a quarentena. O isolamento forçado fez com que a atriz se recolhesse com os filhos mais novos, Theo e Lis, em Pirenópolis, cidade goiana onde a mãe Walnízia também mora. Inclusive, Adriana relata que ela é sua maior referência. “Eu tenho certeza de que a influência da minha mãe é o ponto mais forte na escolha da minha carreira”, afirma a atriz. Ela explica que dona Walnízia fez parte do grupo teatral Movimento Eureka de Brasília e, ao acompanhá-la ao teatro, ficava encantada com as peças e encenações.

Quando certa atriz mirim desistiu de um espetáculo, Adriana se candidatou à vaga. A primeira experiência teatral marcou significativamente a vida dela, tanto que participou de outras peças e sentiu-se motivada a criar a própria companhia de teatro. Esse desejo se concretizou em 1991, quando se formou pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes e montou a companhia A culpa é da mãe a qual, tempos depois, tornou-se a famosa companhia de comédia Os Melhores do Mundo. Multifacetada, a atriz já atuou em vários espetáculos, dirigiu diversas peças e deu vida a personagens marcantes, como a Juju, do programa Zorra Total, e Mercedez com Z.

Apesar da carreira de sucesso, Adriana Nunes garante que enfrentou inúmeras dificuldades pelo simples fato de… ser mulher! “Basta ver a quantidade de mulheres atuando em filmes, peças e comerciais em comparação à quantidade de homens: não temos o mesmo espaço, mas consigo ver que estamos abrindo caminhos”, ressalta. A humorista cita que começou a fazer shows de stand-up comedy há dois anos junto ao Mamacitas – Movimento de Mulheres no Humor -, na cidade de São Paulo. A temática feminina é muito presente em suas composições e isso se manifesta na parceria feita com a atriz Juliana Guimarães. Juntas, conceberam o projeto Canal Cutículas, no Youtube, em que tratam questões do universo feminino com pitadas de humor.

Perguntada sobre o processo criativo durante o isolamento, Adriana diz que possui rotina de trabalho, tende a concluir os projetos a que se propõe e usa listas e cadernos para registrar ideias. No entanto, sente dificuldade em manter o foco. Pode ser a inquietude inerente à artista e a mente fervilhante de ideias. Mas há algo muito maior que a impulsiona. “Faço o que me dá alegria, que traz felicidade. Daí eu penso que terei retorno, mesmo que não seja imediato. Nunca trabalho visando o dinheiro, ele é consequência”.

 Humor na veia 

Dudé Torres interpretando Zuleica (Foto: Antonio Fernandes)

Era pra ser uma entrevista com duração de uma hora, mas acabou durando duas e ficaram assuntos pendentes para outro encontro… E quando chega o dia da segunda entrevista – que, na verdade, foi uma prosa com boas risadas – duas horas não foram suficientes para esgotar tanta história boa que o ator e humorista cearense Dudé Torres tinha para contar. Quando eu achava que já tinha abordado tudo, ele solta: “Olha, nem te falei que estou em tratamento para depressão”. Inicialmente surpresa, parei, respirei fundo e entendi que quem promove o sorriso também possui os próprios conflitos.

As entrevistas com Dudé Torres ocorreram por videochamada. Em todas elas, o ator me atendia de casa, na cidade de Fortaleza. Na primeira entrevista, ele me pediu desculpas por estar fumando. Falei que ficasse à vontade. “Pode deixar, estou me sentindo em casa”, gargalhou. Segundo o ator, ele é “especialista” em quebrar protocolos e formalidades. Irreverente, Dudé conta que sempre fez boas amizades por onde passou. Inclusive, cita uma viagem que fez para Aracaju com os amigos cearenses, os humoristas Paulo Diógenes e Aloísio Júnior, onde apresentaram a peça Três Donzelas, uma comédia.

Após o show, a produção os levou para jantar num restaurante francês cheio de formalidades. Dudé, apesar de conhecer um pouco do idioma, desconhecia os pratos franceses e, na ocasião, pediu sugestão ao garçom, o qual indicou a perdiz. Todos que estavam à mesa olharam para Dudé, que disse: “Sim, traga a perdiz”. No entanto, ele nunca havia provado a iguaria. O ator conta que, ao servirem o prato, perguntou: “O que é isso?” no que o garçom respondeu: “O prato que o senhor pediu”. “Moço, no Ceará isso se chama pomba; só que as de lá são maiores, essas são umas pombinhas”. As pessoas ao redor não se contiveram e riram. É assim que o cearense chega e encanta.

Dudé lembra que já fez show no Teatro Dulcina de Moraes, em Brasília. Na época, Nelson Piquet e a família foram prestigiar o espetáculo. Depois, o piloto convidou os artistas para jantarem. Dudé conta que um dos pratos servidos o deixou abismado. Era uma espécie de ovo de avestruz. No entanto, aquilo lhe causara estranheza, pois não continha gema. O humorista degustou o prato e não o apreciou, mas manteve “a classe”. Ao ir embora, Dudé Torres comentou com os colegas de palco: “Gente, pelo amor de Deus, o que era aquele ovo sem gema?!”. Nisso, todos caíram na risada e falaram: “Não era ovo, era queijo de búfala”.       Nascido em 1970, em pleno regime militar, o sétimo filho de Araci e Francisco sempre se destacou pela graça. Dudé Torres alega que a monotonia o entediava. Quando adolescente, costumava se fantasiar pra provocar o riso na família. Descobriu, tempos depois, que a mãe participava de dramas, danças típicas do interior do Ceará, e a descreve como uma bela mulher, que dançava com maestria, e que, de alguma forma, o influenciou na escolha da carreira artística. Apesar de analfabeta, a mãe era uma pessoa sábia e, vez ou outra, soltava umas frases engraçadas. O pai, mestre de obras, mal tinha tempo para educá-los. A missão ficou a cargo da mãe que orientava os filhos mais velhos a ensinarem os mais novos.

O primeiro contato com o teatro foi aos 12 anos. Dudé sentiu vontade de atuar e percebeu que tinha facilidade em decorar falas. “Quando comecei a participar do teatro, vi que aquilo era meu mundo. As coxias, a liberdade de trocar de roupas, sem sensualidade, sem maldade, totalmente profissional”. Aos poucos, o ator foi tomando forma. Realizou cursos, oficinas, participou de festivais e conheceu outras pessoas do meio artístico. Aos 15 anos, mudou-se com a família para a cidade de Hidrolândia (a 250 km de Fortaleza). No local, conseguiu profissionalizar-se e intensificar a vivência teatral. Nesse período, participou de eventos culturais e descobriu outro prazer: o de escrever.

Em 1985, Dudé montou a Companhia do Povão. O humorista relata que, até hoje, guarda os textos encenados. Caçula da turma, destacou-se pela desenvoltura no palco. Dois anos depois, retornou à cidade natal e aprendeu sozinho a costurar e a fazer crochê. Conta emocionado que o pai fazia de tudo e isso o incentivou a aprender novos ofícios. “O lado engenhoso ‘puxei’ ao meu pai. Ele era muito criativo, profissional e uma pessoa muito íntegra e honesta”. Aos 20 anos, Dudé já era dono da própria empresa de costura e ensinou o ofício às irmãs. Por um tempo, afastou-se dos palcos para se dedicar à confecção, mas, sempre que podia, participava de oficinas teatrais para se manter atualizado e atuante. Inclusive, durante esse isolamento social, o crochê aprendido naquele tempo tem sido não só uma terapia,  mas também fonte de renda para o humorista.

Dudé diz que a comédia ocorreu espontaneamente na vida dele após participar de um festival de humor no qual interpretou um caipira que tocava violão – o Jeca Preá. A personagem lhe rendeu a segunda colocação no concurso. Depois disso, o trabalho passou a ter mais visibilidade na capital cearense. O humorista Paulo Diógenes, amigo de Dudé, ajudou o ator a aprimorar-se no humor. Juntos, viajaram por várias capitais. Dudé interpretava o cantor Roberto Carlos, com um tom cômico. Pouco tempo depois, deu vida à personagem Zuleica, a doméstica que o consagrou na peça Três Donzelas, uma comédiaem cartaz por três anos. O ambiente teatral é o que mais fascina o humorista e ele sonha em encenar uma peça dramática.

Após o sucesso da peça, Dudé permaneceu no ostracismo por quase três anos. Afastou-se do palco, dos amigos e dedicou-se aos trabalhos manuais. Não houve brigas, apenas sentia-se insatisfeito com a situação da classe artística. Durante o afastamento, passou a refletir acerca do papel do humorista e, também, como iria desenvolver as personagens a partir da percepção das pessoas com quem conversava. Ele não teve dificuldade em retornar aos palcos. Relata que, ao se caracterizar como Zuleica, de imediato a “incorporava”.

Dudé lamenta que a classe artística continue sendo desvalorizada. Ele prefere atuar no teatro, pois, além de o cachê ser maior, acaba tendo mais proximidade com o público. Conta que, ao final de um espetáculo, foi abordado por uma senhora que se identificou como professora universitária e estava levando amigos de outra cidade para assistir ao show de humor. A mulher, também cearense, disse que  tinha preconceito por esse gênero teatral. No entanto, depois daquele dia, o paradigma havia se desfeito. Dudé diz que já se deparou com comentários e situações preconceituosas. “Pra mim, ouvir o relato dessa senhora foi de uma grandiosidade, pois mostra como ainda há preconceito, ou mesmo presunção acerca do nosso trabalho sem, ao menos, conhecê-lo”.

Ele também lembra de outra situação em que, após o espetáculo, uma senhora acompanhada da filha pediu para ir ao camarim falar com os atores. Ela estava extasiada e agradeceu muito, pois relutava em assistir ao show de humor, já que vivia um processo depressivo após a perda da mãe. No entanto, afirmou que, naquele dia, a apresentação havia resgatado a alegria dela pela vida. A emoção tomou conta de todos que estavam no camarim. E ao relatar a história, Dudé se emociona e reconhece o quão seu papel social é relevante. “Motivos eu tenho para não continuar. Porém, atuar é um dom, está na ‘veia’ e me sinto privilegiado por morar num estado em que o humor foi elevado à condição de patrimônio imaterial, por meio de lei. É reconhecimento da importância do humor para a sociedade cearense”.

O humorista acredita que esse período de quarentena é uma espécie de provação. Ele entende que é preciso estreitar os laços, praticar a tolerância e a resiliência. Apesar de morar sozinho, não se sente solitário. Conta com os amigos e os três filhos, com quem mantém contato pela internet. Ele recorda que trabalhou até 19 de março, véspera do isolamento decretado pelo governo do Ceará. Como vive do humor, o ator recebeu cestas básicas de um grupo de doadores, a quem é muito grato. Além disso, foi um dos contemplados pelo edital da secretaria de cultura do estado do Ceará, o qual foi lançado para ajudar a classe artística durante a pandemia. Dudé tem produzido conteúdo para o projeto cultural Dendicasa no qual a personagem Zuleica “conversa” com a máquina de lavar roupas sobre diversos assuntos relacionados à pandemia.

São tantas histórias e vivências, que, ao final da entrevista, Dudé lamenta não ter conhecido o escritor Ariano Suassuna. Para o humorista, se Suassuna o conhecesse, certamente escreveria uma trilogia sobre as aventuras dele…

Olhar crítico do humor

O jornalista, dramaturgo e crítico de arte Sérgio Maggio tem visto nas redes sociais muitas postagens de cunho humorístico. Inclusive, durante a quarentena, também tem se valido desse recurso nos próprios posts. Convidado a analisar o papel comunicativo e a importância do humor na pandemia, o dramaturgo faz ampla reflexão sobre a temática. “O humor como arte e linguagem tem a função de fazer com que a realidade seja percebida como um viés da contradição e da exposição do ridículo, de mostrar como o homem lida com a realidade que lhe é apresentada”, relata.

Propor ao homem que ria de si mesmo e da realidade na qual está inserido é um dos papéis do humor clássico. Segundo Maggio, o humor conduz a realidade ao surreal, ao extremo, apresentada de forma absurda. “Essa capacidade de fazer o homem rir de uma situação que está à sua frente sendo imposta como uma realidade é uma capacidade que faz com que as pessoas baixem a guarda e raciocinem sobre o pensamento já moldado”, complementa. O crítico de arte cita que o humor de desconstrução do real tem sido realizado, de forma magistral, na internet, nos programas de TV e pelo humorista Marcelo Adnet.  

Sérgio Maggio menciona o dramaturgo francês Molière, considerado o pai do humor, o qual afirma que, moralmente, é possível rir de qualquer coisa. No entanto, Maggio ressalta que, eticamente, há limites para o uso do humor. “Estamos vendo toda uma mudança de mentalidade dos humoristas que já passaram pela onda do politicamente correto e estão pensando em novas formas de promover o riso, mas não para ferir um grupo, uma minoria, e sim, desestabilizar o status quo”, reforça.

 Além disso, percebe que o trabalho da nova geração de humoristas tem sido pautado por princípios éticos. O dramaturgo vê possibilidade de fazer humor, ainda que em meio à pandemia, desde que atinja o opressor e não o oprimido. “Temos um governo federal que luta a favor do vírus e da contaminação, então é possível deslocar o humor para essa esfera”. É possível também rir do comportamento adotado na quarentena, da mudança do cotidiano e da crise política. Como qualquer manifestação artística, incluindo o drama, o humor pode “alienar ou emancipar as pessoas acerca do tema abordado”. A função da arte é promover uma realidade de forma completamente crítica. “O humor que aliena não é um humor bem-vindo, pois mantém o indivíduo no status quo, em que alimenta os estereótipos existentes e as agressões às minorias”.

A crise ocasionada pela pandemia afetou o trabalho da categoria. “O artista foi o primeiro a parar e, provavelmente, será o último a voltar”, afirma o dramaturgo. Maggio prevê que a crise afetará o modus operandi do artista e isso alterará, inclusive, a forma de se apresentar ao público. “O fazer artístico e criativo sofrerá profundas transformações e isso gerará novas formas, novos olhares”, deduz.

Sobre o pós-pandemia, o jornalista analisa que a percepção das pessoas e o olhar perante o mundo serão modificados. A forma de viver, os contatos, as relações, tudo isso já está em crise e sendo discutido em plena quarentena. A possibilidade de contaminação, os protocolos de saúde, o distanciamento, ou seja, todas essas questões afetarão profundamente as relações. “Não é à toa que vivemos a crise em relação à questão racial; espero que sejamos mais humanistas, melhoremos nossas relações com a arte, a cultura e a educação”, conclui.

Pós – pandemia

A falta de contato físico reforça a importância do afeto. Quando for possível, a primeira coisa que Lucas Moll pretende fazer é viajar até Brasília para rever os familiares e dar um abraço na Mavie, 2 anos, de quem sente muita saudade. Para Adriana Nunes, os laços foram estreitados durante a quarentena, especialmente com os filhos mais novos; todavia, a alegria não está completa porque permanece distante de outras pessoas queridas, como a filha mais velha Ana Terra Nunes, 25 anos.

Dudé deseja abraçar os filhos e anseia pela elaboração de políticas públicas destinadas  à classe artística, pois a volta ao trabalho dessa categoria deve ocorrer de forma lenta e gradativa. Ele também sonha em participar de algum projeto cinematográfico. Lucas tem focado em conteúdo digital. Acredita que as ferramentas digitais impactarão na forma de se fazer humor. Já Adriana Nunes pretende ir a Lisboa, no segundo semestre, para concretizar um projeto pessoal. Além disso, é uma das parceiras no projeto que apresentará histórias e músicas do interior do Brasil intitulado Conte Lá Que Eu Canto Cá.

Independente dos desejos pessoais, há algo em comum entre os artistas: a preocupação de quando e como será o retorno aos palcos. Enquanto isso não acontece, eles idealizam o momento em que ouvirão novamente as gargalhadas de perto…

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