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Brasília

90 doses para atender a maior comunidade quilombola do país

Mais de 5 mil calungas dependem de número ínfimo do imunizante contra a covid-19 para vacinação de 158 funcionários da saúde que atuam na região

Redação Jornal de Brasília

20/01/2021 18h02

Cezar Camilo
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O município de Cavalcante (GO), a 226 quilômetros de Brasília, recebeu 90 doses da vacina CoronaVac, enviadas pelo Ministério da Saúde na última segunda-feira (18). O Plano Nacional de Imunização prevê a aplicação prioritária dos profissionais que atuam na linha de frente da crise sanitária – no total, 158 servidores da secretaria municipal. Segundo a prefeitura, com o estoque disponível, apenas 90 destes funcionários serão imunizados com uma única dose do medicamento.

Eles são responsáveis pelo tratamento da maior comunidade quilombola do Brasil, são mais de 130 famílias descendentes diretas dos povos escravizados em 32 comunidades na área rural do município goiano. O sistema público de saúde atende aos 5.650 calungas que dependem do Estado para sobreviver ao vírus – o início da aplicação das vacinas foi nesta quarta-feira (20).

A Secretária Municipal de Saúde de Cavalcante, Gesselia Batista, disse que os quilombolas também deveriam estar incluídos no grupo com prioridade para receber a vacina. Porém, a quantidade disponível não atende nem aos profissionais da saúde. “Pelo calendário, já deveriam estar na primeira fase. A questão é que 90 doses não contemplam nem os profissionais na linha de frente no combate à pandemia […] Os municípios vizinhos receberam menos do que isso, é uma situação complicada mesmo”, disse Gesselia.

Segundo a Superintendência de Vigilância em Saúde de Goiás, os lotes de medicamentos serão repostos a cada dez dias. A vacinação vai se dar de acordo com a quantidade de medicamento disponível em estoque.

O Observatório da Covid-19 nos Quilombos, uma parceria da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) com o Instituto Socioambiental, computa 4.753 infectados no segmento em todo o país. Foram 179 vítimas da covid-19, quatro em Cavalcante (GO) até setembro de 2020.

Recorremos ao Supremo Tribunal Federal (STF) para inclusão dos indígenas e quilombolas na lista de prioridade na vacinação. Infelizmente, o sistema de justiça não tem funcionado. Ficaram os indígenas e nós, quilombolas, fomos retirados”, disse a professora substituta da UnB e coordenadora da CONAQ, Givânia Maria da Silva.

Segundo o Ministério da Saúde, houve a necessidade de um novo planejamento dentro das prioridades elencadas inicialmente em razão da quantidade de doses recebidas pelo Governo Federal, seis milhões de doses até ontem (20). “Dentro do público priorizado para a campanha, foi feito um recorte. Os quilombolas estão contemplados na campanha nacional de vacinação contra a Covid-19, conforme o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, divulgado em dezembro. Entretanto, como o quantitativo recebido até o momento, foi necessário reconsiderar”, disse a pasta em nota.

A vacinação de índios em aldeias começou nesta segunda-feira (19), no estado do Amazonas, em Umariaçu. A primeira indígena da aldeia a receber a vacina contra o coronavírus foi Isabel Cezério, 68 anos, da etnia Ticuna. Sem obrigatoriedade e com cadastramento prévio, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) estima que 35.000 indígenas estão aptos para receber a vacina na região.

O médico chefe da Comissão de Controle de Infecção do Hospital Santa Lúcia, Werciley Júnior, disse que a lógica de imunização deveria ser o inverso do que vem ocorrendo – ainda longe do ideal: “com vacinas para todo mundo”. As comunidades isoladas, sem uma defesa imunológica plena devido à menor exposição contínua a outros anticorpos, deveriam estar entre as primeiras na lista de vacinação.

A lógica, infelizmente, é a inversa. Índios e quilombolas deveriam ser os primeiros a receber o medicamento. São menos expostos continuamente a antígenos, por isso desenvolvem uma defesa incompleta. Por isso, estão inclusos na população de maior risco”, disse o médico Werciley Júnior. Ele lembra que não adianta vacinar uma parte ínfima da população, “não adianta porque se chegar alguém de fora, doente, vai haver infecção”, explicou.

O prefeito eleito em 2020 na cidade de Cavalcante, Vilmar Kalunga (PSB), é um integrante da comunidade isolada em Goiás. Ele disse ao Jornal de Brasília que a cidade passa por dificuldades muito grandes durante a pandemia, principalmente pela falta de recursos para orientar a população quanto às medidas de vigilância sanitária. “Não tenho mais nem carro funcionando, está realmente difícil a situação”, lamenta Vilmar.

Os quilombolas não vão entrar nessa lista prioritária de imunização. É ruim, é desconfortável, mesmo reconhecendo que tem áreas com maior risco, como os profissionais da saúde. De qualquer forma, isso vai contra os direitos adquiridos pelos quilombolas”, disse o primeiro presidente quilombola da cidade com o maior número habitantes com descendência de população escravizada no Brasil.

Outros estados

Givânia Maria da Silva é doutoranda do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e nasceu no quilombo de Conceição das Crioulas, interior de Pernambuco. “Grupos historicamente marginalizados”, relata a professora. “Esperamos que o gesto do governo do estado de São Paulo, em incluir a comunidade de quilombos na lista prioritária, sirva de exemplo a outros estados”, disse Givânia.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), decidiu retornar a população historicamente fustigada à lista prioritária na aplicação do imunizante. Na terça-feira (19), o tucano acusou o Ministério da Saúde de retirar os quilombolas da versão final do PNI (Plano Nacional de Imunização). Em dezembro, eles constavam. Idosos, profissionais de saúde e indígenas no 1º ciclo de vacinação também integram o topo dos cadastros.

Em São Paulo, a população quilombola fará parte do programa de vacinação desde já, conforme previsto no Plano Estadual de Imunização”, disse Doria em sua conta no Twitter. Procurado pelo JBr, o Ministério da Saúde não enviou resposta até o fechamento desta reportagem.

Vamos continuar na resistência e na luta pela vida, porque todas as vidas importam. Nos mobilizamos e cobramos justiça, na esperança de que todos os grupos minoritários sejam incluídos na ordem de prioridade”, disse a coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Givânia Maria, ao comentar o caso.

Estou em uma dificuldade muito grande como prefeito de Cavalcante”, disse o calunga Vilmar. “Muitos outros prefeitos quilombolas têm dificuldades de enxergar uma saída, muitos deles buscam aqui um caminho de mudança, mas está difícil”, lamentou o prefeito eleito.

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