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Folhetim "Outro Lugar na Solidão"

Folhetim – Outro lugar na Solidão. Capítulo 20 – Voltou pra onde?

Folhetim – Outro lugar na Solidão. Capítulo 20

Redação Jornal de Brasília

25/08/2020 11h33

Folhetim

Por Marcos Linhares, Adriana Kortland e Marcelo Capucci
Especial para o Jornal de Brasília

Depois de um dia frenético no hospital, Suzana caminha rapidamente pelos corredores para tentar deixar a instituição sem ser percebida. Queria sua válvula de escape. Não tem sido fácil ver tantas mortes, inclusive a do prefeito. Ver Giaco naquele estado e não poder consolá-lo foi a gota d’água. O transbordo com certeza foi entender, a fórceps, que Nonata venceu a disputa de sua vida. A única e agradável surpresa foi o ombro do Dr. Téo. Mas ela ainda se censurava por causa da idade do jovem médico:

– Acho que isso é uma maluquice que pode me expor diante de toda a comunidade hospitalar. Melhor esquecer. É só amizade. Quer saber: Hoje quero ser Crystal!

Enquanto isso, Dr. Téo Silva comemorava a recuperação de mais um paciente que deixava o hospital. Ele não disfarçava a ansiedade por não ver Suzana, a chefe da enfermaria e seus olhos negros e delicadamente maquiados. Depois da morte do prefeito, ele nunca mais olharia do mesmo jeito pr’aquele olhar.

Em meio às comemorações, Jamil saiu da sala de Pablo Fukushima, diretor do hospital e principal articulador dos desmandos do finado prefeito na instituição. Antes de bater a porta, o capataz de Giacomo Modena, assim como todas as pessoas no corredor, ouviram:

– Jamil, vê se cuida da sua língua pra não ter problemas e acabar dando bom dia a cavalo, ou pior, comer grama pelas raízes.

O principal jagunço da prefeitura deu de ombros, pegou a camionete e foi para casa. Ao anoitecer, entrou no Opala SS e partiu. Precisava de um pouco de Crystal.

A plateia do Felina’s já urrava como sempre. Suzana se arrependera de ter tomado duas doses de Crystal Head antes de dançar. Muitos clientes e funcionários usavam máscaras. A “stripper” estreava um modelo que lhe cobria quase todo o rosto deixando à mostra apenas os olhos camuflados pela “make”. Era a única forma de se proteger do contágio pelo coronavírus. Ela sequer desceu do tablado para ficar próxima às mesas. O medo da pandemia e de se tornar parte da estatística de mais de 100 mil mortes no Brasil a fazia pisar em ovos. Mas o desejo por colocar sua válvula de escape em funcionamento era maior. Porém, a nova máscara a deixava ofegante e, à medida que rodopiava, sentia a dose excessiva de vodka batendo em seus neurônios. Não finalizou a coreografia. Nauseada, correu para o camarim antes do tecladista terminar o tema. Os frequentadores gritavam:

– Crystal, Crystal… Mais um, mais um…

Caminhando pelo corredor, ouviu um barulho de botas açoitando o tablado do pequeno palco. Apertou o passo notando o tilintar das fivelas do calçado e aquele barulho lhe parecia familiar. Abriu a porta do camarim e, ao fechá-la, ouviu uma discussão, um solavanco. Reconheceu a voz de Jamil que reclamava com os seguranças da casa, quase dentro da coxia:

– Me soltem, seus imundos, eu vou matar vocês!

Ricardo Xavier, que usava máscara de proteção industrial, enviou o arquivo para o delegado e abriu mais uma garrafa de água com gás para assistir à cena dos dois seguranças enormes que não conseguiam segurar o senhor magricela que, apesar da confusão, não tirou o chapéu da cabeça e o lenço xadrez que lhe cobria o rosto em momento algum. Os jagunços tentavam conduzi-lo para fora da boate, mas a iluminação precária e o aperto entre as mesas dificultavam a ação. Para piorar, o DJ aumentou o volume a fim de mitigar o mal estar entre os fregueses do bordel. Afinal de contas, ninguém reconheceu aquele que parecia ter subido no palco com tanta intimidade. Mas os grandalhões não queriam nem saber, só queriam cumprir as ordens da casa: “Ninguém se aproxima ou toca a Crystal, a não ser que ela queira!”

Ao passar por Xavier, Jamil que tentava se esquivar com chutes e pontapés, acertou a garrafa d’água do policial que ficou encharcado. Antes que o cana reclamasse, Jamil olhou dentro de seus olhos e disse:

– Qual é, forasteiro?! Se reclamar, vou regar as flores da sua cova com essa porcaria de água gasosa.

Xavier pensou em puxar seu revólver e dar voz de prisão ao bêbado descontrolado. Mas mediu o tamanho do estrago, pois sabia que muitos ali portavam, legal ou ilegalmente, uma arma. Velhaco, percebeu que a atitude poderia desencadear um tiroteio sem precedentes.

O policial terminou o restante do líquido que sobrou na garrafa e deu um tempo antes de sair do ambiente. Estranhou ao ver os seguranças voltando, ressabiados. Jamil parecia não estar mais no local. O policial, desconfiado foi ao estacionamento e só viu um velho Corsa marrom e algumas marcas de pneus largos que o fizeram lembrar das marcas dos pneus da cena de Morte de Chiara.

Dessa vez, ele as fotografou, apesar das dificuldades em acionar o “flash” da câmera.

Xavier voltou à boate e indagou os seguranças:

– Cadê o “cowboy”? Vocês dois não conseguiram segurar aquele magrelo?

– Aquele cara é um psicopata, saiu daqui dizendo que ia nos matar. Nos derrubou com uma força bruta e perdemos ele de vista. Não sabemos se ele saiu ou voltou lá pra dentro.

Xavier, desconfiado daquela desculpa esfarrapada, acendeu um cigarro e perguntou:

– Pra dentro de onde?

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA

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