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Brasília

Severina, orgulho de Planaltina

Residente de uma casa, onde o descartável vira arte, a senhora de 82 anos esbanja talento

Redação Jornal de Brasília

18/01/2022 7h59

Gabriel de Sousa

Na região administrativa de Planaltina, conhecida pelo seu valor artístico e cultural, uma simples senhora de 82 anos, vaidosa, atenta e comunicativa, reside distante dos museus artísticos e do centro econômico da cidade. Em uma casa no acanhado bairro da Pombal, Severina Gonçalves, nordestina, mãe de nove filhos, e dona de um talento imensurável, guarda objetos descartáveis, como fios de cobre, sisal e isopor, e transforma em obras artísticas que já se tornaram presentes em exposições da capital federal.

Severina, com ajuda dos seus familiares, recolhe os materiais jogados pelas ruas do Distrito Federal, e então, com as suas próprias mãos, elabora peças de arte inigualáveis. Apaixonada desde pequena pela natureza, os descartáveis viram pássaros, leões, gaviões, tamanduás, entre outros animais. “Esse material que vai para o cerrado e a mata leva, polui tudo. Se eu não der conta de pegar tudo, eu pelo menos ajudo um pouco. Isso ajuda a preservar a natureza, e a pessoa tem uma rendazinha”, afirma.

Nascida no município de Riacho de Santana, no sertão do estado do Rio Grande do Norte, desde pequena, gostava de criar animais para a sua diversão. Criava pequenos animais com cera de abelha, barro, fibras naturais, pedras, cascas e folhas. Aos 12 anos, Severina fez a sua primeira venda comercial, destinada para uma igreja local. “Tinha uma festa de São João, e eu mexia com algodão, aí eu fiquei com curiosidade e fiz uma peça de roupa para um leilão”, afirma.

No Nordeste, ela casou-se com um homem, e com ele teve 13 filhos, infelizmente, quatro deles pereceram ainda bebês. O seu casamento perdura até hoje, com mais de 70 anos de união. Devido à difícil vida na região, o casal decidiu iniciar a sua rotina de emigração, iniciando a sua trajetória em uma fazenda de café no interior de Minas Gerais.

No ano de 1985, Severina veio com os seus filhos para a região administrativa de Planaltina, na oportunidade de encontrar melhores condições de vida. Para sobreviver, decidiu então vender as suas obras pelas ruas da cidade, para assim conseguir obter renda para poder criar os seus filhos.

Uma das suas filhas é Ana Mago, que criada com o cuidado e empenho da mãe, tornou- se professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEE/DF). Hoje, ela divide o seu tempo cuidando da curadoria da artista, e realiza alegremente as guias das exposições das peças de Severina. Segundo ela, a mãe é um motivo de admiração pela sua simplicidade e pelo seu desempenho artístico único. “Eu tenho muito orgulho. É uma sensação de que é uma pessoa que não tem noção da grandeza que ela tem, uma admiração absurda por tanto talento de uma pessoa que não teve oportunidade, mas que fez o seu próprio caminho, de uma forma lindíssima, e que transforma todos os lugares por onde a arte dela passa” , afirma.

A senhora de 82 anos já conseguiu transformar vários lugares da capital federal. De início, Severina foi tema de uma exposição no Museu Artístico e Histórico de Planaltina. Depois, o público do Plano Piloto também pôde conhecer um pouco mais da sua história, e ver o seu jardim zoológico construído por ela mesma. A última exposição, “Cerrado”, ficou aberta no Complexo Cultural de Planaltina durante um mês, do dia 9 de dezembro até o dia 9 de janeiro, recebendo um grande número de visitantes.

Severina diz que suas mãos, instrumento utilizado por ela para criar as suas peças, já foram mais ágeis. Por conta da idade, “para criar fica mais demorado, e os braços ficam doídos”, explica a artista. Mesmo assim, ela passa os dias e as noites em seu ateliê, fazendo o que mais ama: expressando a sua devoção à natureza em forma de arte.

A Arte Severina

Na região administrativa de Planaltina, há um estilo único de arte, presente em nenhum outro lugar do país ou mesmo do mundo. É a “Arte Severina”, ainda não estudada por especialistas, e não registrada em livros da história artística. Perguntada sobre o que seria essa denominação específica da sua obra, Severina Gonçalves explica que a sua obra é única, e feita por instinto, e que nenhuma outra pessoa consegue reproduzir. A senhora não recebe inspirações de nenhum outro autor ou de nenhum movimento artístico: “Eu apenas crio”, explica.

Essa exclusividade não agrada a Severina, que diz que o seu maior desejo é que outra pessoa pudesse continuar a sua belíssima trajetória. “Quando eu morrer, tenho medo de não ter ninguém que vai saber fazer tudo isso. Eu queria que tivesse outra pessoa que soubesse, para que pudesse continuar”, afirma a artista.

O tema do consumo e do excesso do lixo descartado na natureza, e da falta da preservação da fauna e da flora brasileira não é um tema novo. É citado há décadas por intelectuais e também reproduzido e criticado por artistas. Porém, Severina não conhece essas pessoas e nem as suas obras, não possui um senso crítico embasado em dados ou documentos.

A senhora cria os seus trabalhos por uma espontânea vontade, relembrando apenas da sua vivência, da sua difícil vida no Rio Grande do Norte, da sua sobrevivência na fazenda de café de Minas Gerais e da sua vida construída em Planaltina, e claro, fomentando a sua paixão imensurável pela natureza brasileira. Através de um instinto puramente artístico, ela consegue formular a “arte severina”, e fazê-la sobreviver em meio aos desmatamentos e à destruição do meio-ambiente.

Aliás, Severina não se acha artista. Sua filha, a professora Ana Mago, brinca que sempre tentou convencer a mãe da sua posição de criadora de arte e sobre o poder e significado das suas criações. Mas a senhora se resume a dizer que faz as suas obras apenas “porque gosta”.

Ao entrar na sua casa, Severina pede timidamente para que nós não prestamos atenção na bagunça do seu local de trabalho. A sua residência é um museu artístico, um “Louvre” dentro de uma humilde residência em Planaltina. A senhora não nos trata como visitantes de uma exposição, e sim como visitas carinhosas dentro da sua casa. Apaixonada por uma leve conversa, ela oferece café a quem a visita, e explica o significado de obra por obra, e o nome e os materiais dos “bichinhos”, criados por ela.

Quando nos espantamos com a perfeição de suas artes, Severina de antemão diz que as suas peças são “fáceis” e “simples”. Algumas, são até mesmo “feias”. Esta última fala, sempre é repreendida por quem a escuta, que falam com uma rápida objetividade sobre a beleza das suas obras.

Mas nem Severina Gonçalves, e nem os que acompanham a sua longa e desconhecida trajetória sabem definir com palavras o tamanho da sua grandeza. É simplesmente a “arte severina”. Ela é feita para olhar, se maravilhar, e refletir sobre a existência de grandes artistas que ficam distantes dos polos da arte, e que sobrevivem da sua forma dentro da periferia.

Mesmo com milhares de artistas dedicando as suas vidas para criar uma reflexão sobre a vida, Severina dedicou e ainda dedica a sua arte para sobreviver, na intenção de fazer com que nós possamos fazer com que a natureza, fruto das suas inspirações, seja preservada por toda a eternidade.

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