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Brasília

Mortes no trânsito brasileiro equivalem à queda de um avião por dia, mas têm menos repercussão

As ruas e estradas no Brasil matam 27 vezes mais do que tragédias aéreas, contudo, parte da população, ignora as estatísticas e se comove muito mais quando um avião cai

Afonso Ventania

18/10/2024 9h00

Foto: Arquivo/Agência Brasília

Os dados são assustadores. Milhares de brasileiros perdem a vida todos os anos nas vias e rodovias de todo o país. No primeiro semestre de 2024, somente nas rodovias federais, 2.908 pessoas morreram em 35.166 sinistros, que deixaram mais de 40 mil feridos, de acordo com os dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Por outro lado, o Brasil registrou 135 ocorrências de acidentes aéreos que mataram 110 passageiros, já considerando a recente tragédia aérea envolvendo o voo 2283, da Voepass, que caiu em Vinhedos (SP), matando 62 pessoas, no último dia 09 de agosto. Os dados são da Rede de Segurança da Aviação (ASN), da Flight Safety Foundation, organização internacional dedicada à segurança da aviação.
Para a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego do Rio Grande do Sul (Abramet/RS), seja no transporte aéreo ou no transporte terrestre, nenhuma morte é aceitável, seja envolvendo acidentes (aéreos) ou sinistros (no trânsito). No entanto, o que se percebe é que as mortes no trânsito se tornaram quase que habituais no inconsciente coletivo, banalizadas por acontecerem diariamente, como mostram as estatísticas.

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Foto: Agência Brasil

Dados preliminares do Ministério da Saúde divulgados no mês passado apontam que, em 2023, 33.743 pessoas morreram em decorrência do trânsito no Brasil. Número parecido com o registrado em 2022, que mostra 33.894 mortes. A notícia não é nada animadora, já que 92 pessoas morrem todos os dias devido à violência no trânsito. É como se um avião despencasse a cada 24 horas com dezenas de passageiros.

Tragédias com voos comerciais podem aumentar o medo das pessoas de andar de avião, no entanto, de acordo com estudo do MIT (Massachusetts Institute of Technology), o risco de morte em acidentes aéreos entre 2018 e 2022 foi de 1 em 13,7 milhões. No Brasil, segundo a publicação, o risco é ainda menor chegando a 1 chance em 80 milhões.

Por que mortes em aviões chocam mais que no trânsito?

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Destroços do avião da Voepass que caiu em Vinhedo, a 79 km da capital paulista, nesta sexta (9) – Miguel Schincariol/AFP

Seja no asfalto ou no ar, as mortes interrompem sonhos, histórias, vínculos e, para quem fica, a dor da perda é irreparável. Para explicar as razões pelas quais as tragédias aéreas causam maior consternação do que as mortes envolvendo sinistros de trânsito, a presidente da Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego (Abrapsit), Patrícia Sandri, faz algumas considerações. Para ela, os sinistros de trânsito se tornaram corriqueiros e deixou-se de dar importância para esta tragédia e o quanto ela representa.

“Jamais podemos medir a dor de uma perda, seja do aéreo ou de um sinistro de trânsito. Um ponto que é difícil de se assumir na questão do sinistro, que nem seria um acidente, já que pode ser evitado, é assumir que a responsabilidade é nossa”, aponta Sandri, ressaltando que a maioria das tragédias no trânsito são por falha humana. “Por estarmos na direção de um veículo acreditamos que temos sempre o controle desta situação e temos mesmo, mas às vezes abusamos e não respeitamos as regras de trânsito e esta atitude pode ser fatal, já que 90% dos sinistros no trânsito ocorrem por falha humana e estão ligados aos nossos hábitos indevidos, então as regras acabam sendo desrespeitadas e ocorrendo as tragédias no trânsito”, lamenta Patrícia.

Para o presidente da Abramet/RS, Ricardo Hegele, o valor de uma perda, seja ela qual for, não pode ser mensurada. “No que se refere ao trânsito não podemos mais banalizar e tratar com normalidade as vidas que perdemos no asfalto, aceitando que tantas pessoas no auge da sua vida e da sua produtividade tenham suas histórias interrompidas todos os dias por situações evitáveis”, destaca.

Ainda segundo Patrícia Sandri, uma morte acontece a cada 15 minutos no trânsito, e um ferido e um sequelado a cada 2 minutos. “Comparando com os acidentes aéreos é como se caísse um avião a cada dia. Então, a dor de ambas as famílias, seja de um acidente aéreo ou de um sinistro de trânsito é idêntica, não podemos comparar, mas o valor que é dado a cada um é o que muda”, afirma. E acrescenta: “morrer no trânsito é tido como um menos morrer, parece que as vítimas não têm vozes. Talvez a prevenção que é dada e feita no aéreo seja diferente, pois existe todo um investimento e pesquisas. Todo este processo é muito mais valorizado e no trânsito infelizmente isto não ocorre”, ressalta.

Impunidade

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Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

Algumas das maiores causas do número alto de sinistros de trânsito, apontada por especialistas, são: alta velocidade, poucas campanhas de educação e a impunidade de motoristas infratores. Em 2022, o ciclista Augusto Aurélio Leite foi atropelado e morto em uma rodovia federal. O sinistro aconteceu na BR 040 no sentido Valparaíso de Goiás – Brasília (DF), em uma manhã de domingo.

Guto, como era conhecido, pedalava com a namorada e alguns amigos no acostamento quando foi brutalmente atropelado quando um motorista fez uma ultrapassagem irregular. Ele ainda foi socorrido, mas morreu na Unidade de Pronto Atendimento logo depois. De acordo com a irmã de Augusto, Rosana Porto, o motorista ainda não foi julgado. Segundo ela, o processo teve vários erros e, por essa razão, dois anos após a morte de Augusto, o processo criminal ainda não foi julgado. “Primeiro que a Polícia Civil demorou para finalizar e encaminhou para a vara (criminal) errada. Depois, já na vara correta, o motorista não foi encontrado no endereço dado por ele. Mas consegui o endereço certo no processo cível e o entreguei no Fórum de Valparaíso (GO). No entanto, mesmo depois de ter sido intimidado pela Justiça, o motorista não se apresentou e nem apresentou defesa até o mês passado”, lamenta Rosana.

A morte de Guto escancara ainda mais o que já era evidente; enquanto a prevenção dos sinistros aéreos é maior, mais cuidadosa, com investimentos, pesquisas e a punição dos responsáveis pelos envolvidos nas tragédias é mais rigorosa, na segurança viária o processo é inverso. As vozes das vítimas são caladas para sempre enquanto o clamor por justiça das famílias não é ouvido pelo Estado.

A dor será eternamente de quem fica. Para a mãe de Augusto Aurélio, além da saudade, permanece a ausência dolorida do filho companheiro que morava com ela e cuidava de suas comorbidades. Mas nada incomoda mais a família do ciclista do que a sensação de impunidade do motorista que o matou. “Acho que a minha mãe morrerá e não verá nenhuma justiça. Nem sequer tivemos qualquer indenização do Estado ou mesmo do motorista que matou o meu irmão. Acho que no final não receberemos nem cesta básica”, lamenta Rosana.

Em um misto de indignação e emoção, Rosana reitera que é preciso melhorar a legislação urgentemente e conscientizar as pessoas para serem mais tolerantes no trânsito. “É preciso atualizar as leis de trânsito e torná-las mais duras. Tornar a justiça mais célere, sem mordomias e eficiente para punir com rigor os motoristas imprudentes que cometerem crimes ao volante”.

A família de Augusto Aurélio Leite não recebeu qualquer recurso do Estado ou do motorista réu para compensar a perda financeira causada pela morte do ciclista que era enfermeiro e cuidava da mãe. Nem mesmo receberam o seguro DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres), cobrado de todos os veículos que circulam no Brasil.

Caso Augusto tivesse morrido em um avião e não em uma bicicleta, a família receberia indenização pelo seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil do Exportador ou Transportador Aéreo (RETA), similar ao DPVAT, mas é garantido por lei e cobre danos materiais e morais. O RETA prevê 30 dias para habilitação dos terceiros prejudicados junto à empresa aérea responsável e, depois desse período, contados a partir da entrega de toda a documentação exigida pela seguradora junto ao responsável, o prazo para pagamento da indenização é de 30 dias.

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