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Brasília

DF tem uma das piores coberturas de saúde mental do país, mas promete expansão de CAPS até 2026

Estudo legislativo revela déficit de unidades e profissionais; Secretaria de Saúde anuncia obras e novos concursos para reverter cenário

Camila Coimbra

21/10/2025 18h27

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Crédito: Camila Coimbra

Um retrato alarmante da rede pública de atenção psicossocial do Distrito Federal vem sendo desenhado por diferentes vozes, seja da população atendida, de especialistas ou do próprio Legislativo local. Um estudo da Câmara Legislativa, aliado ao relato de pacientes e à análise da Secretaria de Saúde, expõe o tamanho do desafio que o DF enfrenta para garantir atendimento digno a quem sofre com transtornos mentais. Mesmo com a segunda pior cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do país — apenas 0,54 unidade para cada 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde —, o governo promete reverter o quadro e entregar, até 2026, novas unidades e reforço profissional em toda a rede.

A publicitária Carla Moura, de 26 anos, moradora de São Sebastião, conhece de perto as lacunas do sistema. Diagnosticada com transtorno bipolar tipo 2, ela recorreu ao CAPS em busca de estabilidade após anos de oscilações entre crises de mania e episódios de depressão profunda. “O atendimento no CAPS é muito humanizado, mas também muito desorganizado. Se eu tinha uma consulta marcada para as dez da manhã, precisava liberar o dia inteiro, porque o atendimento podia acontecer só às três ou quatro da tarde. Houve períodos em que o médico entrou de férias e fiquei até seis meses sem consulta com psiquiatra, o que é proibido por lei”, contou.

O relato de Carla reflete o que o Estudo Legislativo nº 299/2024, elaborado pela Consultoria Legislativa a pedido do deputado Fábio Felix (PSOL), comprovou por meio de dados: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Distrito Federal está sobrecarregada, com baixa cobertura e déficit de profissionais. Segundo o levantamento, existem 18 CAPS em funcionamento, distribuídos nas sete regiões de saúde, mas apenas 14 estão habilitados pelo Ministério da Saúde — requisito essencial para receber repasses federais. As demais unidades, localizadas em Brazlândia, Planaltina, Brasília e Samambaia, não cumprem integralmente os parâmetros de estrutura e equipe exigidos pela pasta federal.

O documento aponta que muitos CAPS do DF atendem populações muito acima do limite recomendado, o que compromete a principal diretriz da política de saúde mental: o cuidado territorial e comunitário. Além disso, há desigualdade regional — Ceilândia e Paranoá, por exemplo, não contam com unidades específicas para o público infantojuvenil, obrigando famílias a buscar tratamento em outras regiões. A falta de profissionais também é grave. O Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), citado no estudo, identificou carência em praticamente todas as categorias, com destaque para psicólogos, terapeutas ocupacionais, psiquiatras e assistentes sociais.

Para a psicóloga clínica Laynara Paiva, os CAPS são essenciais na estrutura da rede pública de saúde mental por funcionarem como porta de entrada para o cuidado psicossocial e o tratamento contínuo. “O CAPS é um espaço de acolhimento, convivência e reinserção social. Ali, o paciente encontra uma equipe multiprofissional que acompanha não só a pessoa em sofrimento, mas também a família, atuando nas dimensões mental, física e emocional”, explicou. Segundo ela, a carência de unidades no DF tem impactos diretos no agravamento dos quadros. “Muitas pessoas com sofrimento psíquico grave não conseguem atendimento adequado ou precisam se deslocar longas distâncias para serem atendidas. Isso gera crises, recaídas e sobrecarga nas famílias.”

A profissional alerta que a falta de acompanhamento constante é especialmente prejudicial para pacientes com depressão e transtorno bipolar, que exigem medicação, psicoterapia e vínculo terapêutico. “A ausência de CAPS suficientes e a sobrecarga das unidades existentes geram piora dos sintomas, risco de suicídio e sensação de abandono”, destacou. Segundo Laynara, a situação também afeta os próprios profissionais. “As equipes acabam atendendo um número muito maior de pacientes do que o ideal, com escassez de materiais e infraestrutura. Isso causa desgaste emocional e prejudica a qualidade do cuidado. É fundamental cuidar da saúde mental de quem cuida.”

A psicóloga defende medidas urgentes para fortalecer a rede: habilitar todas as unidades já existentes, ampliar o número de profissionais e garantir funcionamento 24 horas nos CAPS de maior complexidade, como os CAPS III e CAPS AD III. “É essencial que o DF avance nas ampliações previstas no Recanto das Emas, Taguatinga, Ceilândia, Guará e Gama, com unidades voltadas a diferentes perfis de atendimento — infantojuvenil, álcool e outras drogas e adultos com transtornos crônicos”, sugeriu.

A subsecretária de Saúde Mental, Fernanda Figueiredo Falcomer, reconhece os desafios e afirma que o cenário começa a mudar. “Nosso maior desafio tem sido manejar o histórico de falta de investimento nessa área. Desde o início da nossa gestão, em 2018, enfrentamos o contexto da pandemia, que exigiu reorganização da rede e do orçamento. Assim que possível, retomamos os investimentos em saúde mental”, explicou.

Atualmente, dois novos CAPS estão em construção — um no Recanto das Emas e outro no Gama, este último na modalidade CAPS III, com funcionamento 24 horas. “É um marco histórico, porque o DF só teve um CAPS construído de fato há mais de dez anos. A maioria ainda funciona em prédios alugados ou cedidos, o que limita a estrutura. Nosso objetivo é garantir sedes próprias e adequadas”, disse Fernanda. Outras obras já estão licitadas, como o CAPS de Ceilândia e o CAPS AD de Taguatinga, voltado à dependência química, além do futuro CAPS AD do Guará. A meta é chegar a sete novas unidades até 2026.

A recomposição das equipes multiprofissionais também tem avançado. “Só neste ano, nomeamos 24 psiquiatras, e no ano passado foram mais 16. Hoje não há CAPS sem médico no Distrito Federal”, afirmou a subsecretária. Ela destacou ainda a criação de 800 horas adicionais de carga horária exclusiva para CAPS e a previsão de novo concurso público para especialistas.

Para além da estrutura, Fernanda destaca a necessidade de combater o estigma ainda associado aos transtornos mentais. “Infelizmente, ainda recebemos resistência da comunidade quando anunciamos a construção de um CAPS. O nosso compromisso é com o cuidado em liberdade, dentro da comunidade, e não com o isolamento”, pontuou.

Entre as ações recentes, a subsecretária cita a criação dos Serviços Residenciais Terapêuticos, que abrigam ex-pacientes de instituições de longa permanência. “Conseguimos entregar duas casas — uma feminina e uma masculina —, algo que seis gestões anteriores não haviam realizado. É uma reparação histórica”, destacou. Outra iniciativa é o projeto de matriciamento, que conecta profissionais das Unidades Básicas de Saúde aos CAPS para discutir casos e encaminhamentos — medida que já superou a meta prevista para 2027.

Para a psicóloga Laynara Paiva, enfrentar o preconceito é parte essencial dessa transformação. “O estigma diminui quando há informação. Falar sobre saúde mental de forma contínua e acolhedora é o primeiro passo. Durante muito tempo associamos o sofrimento psíquico à fraqueza, e isso afastou as pessoas do cuidado. Precisamos de empatia e políticas públicas eficazes para encorajar quem sofre a buscar ajuda”, disse.

O Ministério da Saúde, por sua vez, afirma que o indicador de cobertura de CAPS não deve ser analisado isoladamente, pois a RAPS também envolve outros serviços, como Unidades Básicas de Saúde, leitos em hospitais gerais, centros de convivência e unidades residenciais terapêuticas. Em nota, a pasta destacou que o país possui 6.508 pontos de atenção em saúde mental, sendo 3.061 CAPS, e que o investimento federal na área aumentou 35% nos últimos dois anos, com a habilitação de 42 novos CAPS e 111 novos serviços em todo o Brasil.

No entanto, a abertura de novos centros depende dos gestores locais. E no caso do Distrito Federal, o desafio é grande: além de superar a defasagem histórica, o governo precisa garantir estrutura adequada e profissionais suficientes para manter o atendimento em funcionamento.

Para Fernanda Falcomer, a política de saúde mental precisa ser tratada como prioridade permanente. “A meta é que cada região do DF conte com ao menos um CAPS de cada tipo, garantindo que o atendimento seja regionalizado, acessível e humanizado. O cuidado não pode esperar”, afirmou.

Enquanto isso, pacientes como Carla seguem resistindo e lembrando à sociedade que saúde mental é um direito, não um privilégio. “O CAPS é uma porta de apoio e cuidado. As pessoas precisam entender que depressão, ansiedade e bipolaridade não são fraquezas. Precisamos de tratamento e de políticas públicas que nos enxerguem”, concluiu.

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