Animais de estimação não são objetos, mas são comprados e vendidos como se fossem. Tampouco são pessoas, mas recebem tratamento de filho ou irmão. Seja para fazer dinheiro ou aumentar a família, é preciso ter cuidado com o comércio de pets, especialmente devido a episódios de maus-tratos, que não são raros, e consumidores têm parcela de responsabilidade. Na segunda-feira, inclusive, 81 cães foram retirados de um canil clandestino no Condomínio Solar de Brasília, no Jardim Botânico, sob suspeita de maus-tratos.
Não há crime em vender filhotes do seu bicho de estimação ou repassá-los a amigos, mas especialistas apontam que os problemas são os criadores gananciosos e estabelecimentos descuidados. “O comércio implica maus-tratos. Você tem o animalzinho exposto ao sol, sem água, muitas vezes em um lugar fechado”, critica a presidente da Comissão de Direito dos Animais da OAB-DF, Beatriz Bartoly.
Ela alerta para as pessoas checarem a procedência dos bichos que pretendem adquirir e não negligenciarem tempo de desmame, condições de confinamento e indícios de maus-tratos.
A professora de Comunicação Social Beti Zoehler, 60 anos, é dona de Pingo, um pinscher de quase 20 anos, há pelo menos dez na família. Ele pertencia à sua falecida mãe, de quem gostava mais, e se tornou companheiro da senhora por falta de opção: “Hoje eu sinto que ele é uma parte dela e cuido dele”.
Ela garante não ter intenções de vendê-lo, mas não vê problemas em quem comercializa o animalzinho de estimação. “Quem faz isso pode nunca ter tido uma ligação com o bicho, então é melhor que o animal tenha outro lar”, avalia. Para a professora, é utopia tentar acabar com esse negócio e acha ingenuidade que se atribua os maus-tratos à possibilidade de comprar e vender animais. “Quando a maldade existe na pessoa, ela aflora de qualquer jeito”, resume.
Ponto de vista
O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) disse não poder tomar partida na questão se comercializar é certo ou não. O órgão, porém, instrui para tomar determinados cuidados e evitar situações constrangedoras e desconfortáveis. “Sempre aconselhamos que a pessoa interessada visite o local (de compra) e veja o animal junto com os outros, como pai e mãe, verifique as condições onde ele está e a documentação veterinária. Tudo isso ajuda a se precaver”, garante o secretário-geral Marcello Rodrigues Roza.
Sobre a aquisição de filhotes, ele alerta. “É importante que, primeiro, esse animal já tenha mamado por tempo suficiente e, segundo, que já tenha acontecido a transição para alimentos à base de ração, além de já terem sido vacinados”, completa.
Cenário de abandono
A presidente da Comissão de Direito dos Animais da OAB-DF, Beatriz Bartoly, discorda da visão da professora Beti Zoehler. Para Beatriz, é preciso combater essa realidade propagando o entendimento de que “animal não é brinquedo para ser dado como presente”. “É horrível que as pessoas comprem, não tenham paciência para cuidar e depois aumentem os índices de abandono”, indigna-se.
O Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) recebeu quase 15 mil animais domésticos tirados da rua entre 2010 e agosto deste ano. Entidades defensoras como a Anjos Protetores estimavam quase 90 mil cães e gatos em situação de abandono em 2014, mas o número mais aceito atualmente seria na ordem de 40 mil. Independentemente da quantidade de zeros, o cenário preocupa quem se envolve com o tema.
Beatriz se angustia com os criadores que transformam cadelas ou gatas em máquinas de procriar, debilitando-as e confinando-as a uma vida de meras reprodutoras. Tirar o comércio da legalidade, portanto, seria uma maneira de diminuir o problema. Segundo ela, existem frentes parlamentares tanto na Câmara Legislativa quanto no Congresso em cima do assunto, mas esperar uma lei federal seria ilusão.
Controle
A advogada salienta, ainda, que uma lei nesse sentido ajudaria a controlar o mercado de animais silvestres também. “Os bichos de fauna exógena, vindos de fora daqui, precisam de autorização especial, mas, ainda assim, eles vêm”, aponta. Beatriz Bartoly prossegue: “Durante uma época, lagartos viraram moda. Mas eles cresceram, e a pessoas soltaram eles dentro do mato. Quando isso acontece, se torna um problema muito sério para o nosso ecossistema”, critica.
Proibir é a solução?
O passeador de animais Elizeu Rodrigues Marra, de 39 anos, acredita que é mais produtivo imaginar formas de incentivar a adoção. Ele diz entender o desejo de algumas pessoas por “bichinhos mais bonitinhos, mais peludinhos, de raça”, portanto acha inócuo tentar proibir esse tipo de comércio.
“Mesmo que não fosse permitido, iam dar um jeito de vender na clandestinidade, no mercado negro. Jamais vai deixar de existir”, arrisca Elizeu. Ele só lamenta que os mais prejudicados sejam os próprios animais e cobra mais meios de fiscalização, especialmente em canis e pet shops com bichos expostos.
Livre comércio
A Agência de Fiscalização (Agefis) afirma ter poderes limitados para coibir o comércio irregular de pets. Em pontos conhecidos, como a Feira dos Importados, eles garantem promover ações intermitentes durante a semana, mas mesmo que flagrem alguém com filhotinhos engaiolados expostos em frente à entrada só podem levar a gaiola. “Se ele quiser colocar no colo e continuar a vender, pode”, resumiu a assessoria do órgão.
O psicólogo Luiz Henrique Aguiar, de 37 anos, se diz compreensivo com quem vende animais, pois existe custo para manter o animal. Ele também acredita que a proibição do negócio daria vazão a um comércio negro de pets e, aí, sim, os maus-tratos seriam regra. “Quando algo é trazido à tona ou deixado às claras, existe mais poder de fiscalização. A solução é ter alguém em cima”, ressalva.
Luiz Henrique pensa ser necessário combater o preconceito inerente à adoção de bichos. Isso, para ele, seria uma medida efetiva para melhorar a situação. “Há várias sociedades protetoras de animais, abrigos, e mesmo assim as pessoas não querem adotar. Elas pensam se tratar de bichos mais feios e de lugares menos confiáveis”, especula.
Há três semanas, ele procura sua gatinha adotada, a Canjica, vista pela última vez no seu apartamento, no Sudoeste. Apesar da dor da perda, ele garante não se arrepender da decisão e espera que mais pessoas pensem assim para combater efetivamente o cenário de maus-tratos.
Saiba mais
Em maio deste ano, a Secretaria do Meio Ambiente criou o Comitê Interinstitucional da Política Distrital para os Animais (CIPDA). Um dos itens do regimento interno é combater maus-tratos e promover bem-estar. A pasta informou, no entanto, não existir poder de fiscalização nesse caso por se tratar de um órgão de normatização e emissão de pareceres.
O CFMV criou, em outubro de 2014, uma resolução com Diretrizes Gerais de Responsabilidade Técnica para estabelecimentos comerciais de exposição, manutenção, higiene estética e venda ou doação de animais. O documento destaca condições de conforto e segurança em que os animais devem ser armazenados e os deveres e direitos tanto de quem adquire quanto de quem vende.