Afonso Ventania – Bikerreporter –
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É pouco depois das 7h, de uma manhã ensolarada, quando o ônibus da linha 373.2 chega ao terminal da Samambaia para cumprir a segunda viagem entre Samambaia Norte e a Rodoviária do Plano Piloto. A primeira começou às 5h30 e já transportou boa parte dos trabalhadores até o centro de Brasília. O motorista Evandro Miranda e o cobrador José Carlos da Silva fazem uma rápida pausa para beber café e água gelada.
Apesar de apresentar uma pequena deficiência na perna causada por poliomielite na infância, José Carlos, de 58 anos, demonstra uma agilidade impressionante para descer do ônibus com uma muleta.
Cumprimenta vários colegas e, poucos minutos depois, já está de volta ao coletivo. Ele confere as cédulas e moedas na sua caixa e manipula alguns pequenos pedaços retangulares de papéis azuis e cor-de-rosa.
Ao longo do caminho, ele começa a entregá-los para alguns passageiros. Muitos estampam um largo sorriso como se já esperassem aquele momento. Outros, a minoria, esboçam dúvida e perguntam: “o que é isso?”. “Você vai entender”, José responde. São mensagens bíblicas que o cobrador diz receber direto de Deus para evangelizar as pessoas.
“Comecei essa missão há 18 anos. Eu trabalhava na linha que ia até a Papuda (presídio do Distrito Federal) quando recebi de Deus a tarefa de transmitir a Sua obra às famílias dos detentos. Antes eu apenas copiava versículos da Bíblia. Mas, nos últimos seis anos, comecei a receber a palavra direto de Deus e a transcrevo para distribuí-la. No verso, cito alguns versículos que se relacionam com aquela mensagem”, conta.
De acordo com José Carlos, diariamente, de segunda a sexta-feira, são escritas 100 mensagens manualmente. E todas, segundo ele, são consagradas para serem entregues às pessoas certas. “A intenção é que a mensagem vá para o coração mais necessitado. Precisamos cuidar, oferecer a mão, um olhar de carinho. Eu acredito que tenha ajudado muita gente pela quantidade de agradecimentos que recebo. Já ouvi testemunhos de duas pessoas que repensaram a decisão de tirar a própria vida depois que leram as mensagens”, comemora.
O cobrador afirma gastar três canetas inteiras por semana. Segundo ele, o trabalho é realizado das 16h às 22h. Basta ele receber a “palavra” que tudo começa. Questionado pelo bikerrepórter por que não utiliza fotocópias para agilizar o processo, ele explica que “tem que ter um sacrifício para trabalhar para Deus”.
“Eu dedico o meu tempo para Ele. Tenho até um calo no dedo, mas o que importa é levar a palavra”. Ele utiliza a tecnologia apenas aos fins de semana, feriados e nas férias, quando transmite as mensagens pelas redes socias. “São 365 mensagens por ano”, contabiliza, em uma agenda, que um dia pode virar livro, diz ele que nasceu em São Paulo e foi criado em Brasília, onde chegou aos oito anos, em 1973.
“Troco” divino
Cobradores de impostos sempre foram odiados e considerados seres humanos desprezíveis. De acordo com a Bíblia, até Jesus teria sido criticado por participar de uma refeição com Mateus, um conhecido cobrador de tributos antes de se tornar um dos 12 apóstolos. Outros tantos personagens bíblicos também foram convertidos. Zaqueu é um dos mais renomados. Todos, segundo o Evangelho, largaram a profissão, fizeram um exame de consciência e se comprometeram a restituir as pessoas.
José Carlos, o cobrador de ônibus, não precisou abandonar a profissão e muito menos é odiado. Ressignificou sua jornada de trabalho e, como ele mesmo diz ironicamente, oferece como “troco” pela passagem paga, algo com valor inestimável que é a palavra de Deus. “Uma passagem (bíblica) pelo preço da passagem do ônibus”, diverte-se.
Admirado por passageiros fiéis, José é comunicativo e cumprimenta todos que passam pela roleta. Alguns, no entanto, já são conhecidos e cobram o papelzinho “consagrado”. Há até quem os colecione.
“Eu guardo todas as mensagens e cuido para não amassar”, diz a cozinheira Maria de Oliveira, mostrando uma bolsa repleta de pequenos papéis coloridos para logo em seguida fechá-la e abraçá-la demonstrando, involuntariamente, o carinho que tem com o trabalho de José Carlos.
“Quando eu não pego o ônibus dele eu fico triste”, afirma, Maria, visivelmente emocionada. “Faço questão de tirar foto de cada mensagem que recebo para compartilhá-las em minhas redes sociais e grupos de família”, completa.
Outro que admira a obra de José Carlos é o motorista que o acompanha há um ano e seis meses, Evandro Miranda. Ele diz ter testemunhado alguns passageiros chorarem ao receber as mensagens. “A mensagem toca o coração das pessoas. Algumas se emocionam muito. Tenho muito orgulho de trabalhar ao lado dele”, declara.
A iniciativa proativa de José Carlos da Silva mostra que Jesus continua convertendo cobradores de impostos em evangelistas. Cada qual à sua maneira. Mostra também que é possível mudar o mundo com pequenas atitudes. O cobrador de ônibus decidiu transformar o seu entorno, sua comunidade para melhor e, com isso, tem mudado o mundo interior das pessoas. E os passageiros do coletivo da fé seguem felizes todos os dias certos de que estão sendo cuidados por uma força superior.
“Às vezes, as pessoas só precisam de um gesto, de um olhar, e aquele papelzinho leva aquele conforto que alguns precisam num momento de desespero”, ensina, o cobrador evangelista.