Praticamente invisíveis durante a seca, as bocas de lobo ficam em evidência quando o período chuvoso começa no Distrito Federal. Construídas para escoar as águas e evitar a inundação das ruas ao direcionar o fluxo para uma rede coletora, elas se tornam um verdadeiro perigo para quem passa por perto. Isso porque são comuns os casos de entupimentos, falta de tampas, pedaços quebrados ou soltos, e estrutura muito maior do que o padrão, de 23 centímetros.
Na QNN 20/22 de Ceilândia, o tamanho de duas bocas de lobo sem proteção, a pouco mais de 30 metros de distância, impressiona. São mais de 50 centímetros de altura em uma região onde existem duas escolas e uma igreja, com grande movimento de pedestres. Pela dimensão da abertura, um adulto poderia se acidentar com certa facilidade.
Uma delas está com parte da sua estrutura quebrada, sem pedaços do concreto que protege minimamente a frente das bocas de lobo, dando a impressão de que são ainda maiores. Além disso, problemas como rachaduras fazem a população desconfiar da obra e preferir andar pelo gramado.
De mãos dadas com Maria Vitória, de sete anos, Áurea Gomes, 37, conta que costuma passar o mais afastada possível com a filha. “Se vier uma correnteza, como sempre acontece quando chove, leva minha filha e pode até me levar também”, comenta a enfermeira.
Vazão
Para Sérgio Koide, especialista em engenharia sanitária, “o ideal é que a vazão seja atendida por meio de uma sequência de bocas de lobo pequenas e, por isso, é normal ter várias”, como ocorre na QNN 4/6, também em Ceilândia.
Porém, ele diz que o melhor modelo de boca de lobo deve ser analisado pelo engenheiro responsável, que observa a estrutura adequada para cada região.
Grade pode resolver o problema
Trabalhando em frente a uma das bocas de lobo de Ceilândia há mais de dez anos, o mecânico Rocha Lopes, de 41 anos, revela que é comum ter de ficar ilhado durante épocas chuvosas e ainda denuncia: a falta de proteção faz com que lixo e brinquedos sejam depositados no interior da tubulação. Uma criança deixou uma bola de plástico cair ali e ninguém pôde pegar.
“Durante as chuvas, o fluxo de água aqui é muito grande. Já vi a correnteza arrastar até carros por aqui. Imagine uma pessoa?! Qualquer um pode cair ali e não é um caso isolado. Deveria ter, no mínimo, uma grade de proteção”, diz.
Sérgio Koide, especialista em engenharia sanitária, conta que o modelo utilizado na região é mais difícil que entupir do que aqueles que são apenas a grade no chão. “O volume de lixo tem que ser muito grande para obstruir a passagem de água, mas é necessário que haja limpeza periódica. Além disso, as grandes bocas de lobo necessariamente têm que ter um gradeamento para impedir que passem pessoas ou animais”, alerta.
Estas, normalmente, são instaladas em zonas de convergência de grandes vias, que recebem um fluxo intenso de águas da chuva. Para o aposentado José Ribamar, de 72 anos, esta é uma realidade na região. “Acontece muito de a água desequilibrar e até mesmo levar uma pessoa”, afirma.
Ele pede que uma proteção seja instalada, “tanto para evitar o acúmulo e entupimento com lixo quanto para impedir que pessoas fossem levadas, como já aconteceu várias vezes por aí”. Já o especialista entende que “em vias publicas não deve se colocar grandes bocas de lobo sem gradeamento”.
Obra em viaduto posta em xeque
O viaduto da QNN 5/7 de Ceilândia foi palco de duas tragédias, com a morte de uma criança de sete anos e um jovem de 20 anos, afogados devido a falhas de escoamento de águas no local. Na época de fortes chuvas, a inundação chegava a três metros de altura. Foram oito meses de obras de drenagem até a liberação do local, o que ocorreu no mês passado.
A Novacap assegurou que, caso houvesse novas inundações, o nível da água não passaria dos 60 centímetros. No entanto, bastou uma chuva um pouco mais forte para provar o contrário. Nesta semana, a água alcançou mais de um metro e meio de altura e os moradores da região estão preocupados.
“Ficaram um tempão em obras e parece que não adiantou nada. Alagou de novo e os carros tiveram que dar meia volta porque não tinha condição de atravessar o viaduto. Pedestre, só se fosse nadando”, conta o servente João Hilton, de 33 anos. Ele e sua família moram em frente ao viaduto, assistiram o alagamento “de camarote” e agora questionam as melhorias.
Inclinação
O estudante João Júnior, de 19 anos, conta que em épocas de chuva a água chega forte. “A enxurrada consegue afastar alguém facilmente. Eles aterraram na frente, mas a inclinação embaixo do viaduto ainda é grande. É perigoso”, alerta. A força das águas nesta semana conseguiu tirar do lugar a tampa de uma boca de lobo profunda e é mais um risco para quem passa pela região.
Em nota enviada ao Jornal de Brasília, a Novacap informou que “as obras de drenagem foram concluídas, faltando apenas as obras de drenagem complementar que estão em fase de licitação” e que já iniciou a limpeza das bocas de lobo do local, para dar maior vazão às águas pluviais. A companhia prometeu enviar uma equipe técnica “para verificar o possível alagamento no viaduto”.
Mortes expõem necessidade de reparos
No ano passado, em dois dias, duas crianças morreram ao serem arrastadas pela correnteza durante chuvas que atingiram a capital federal e Região Metropolitana do DF. João Vitor Guimarães, seis anos, e Pedro Henrique Fernandes da Silva, dez anos, moravam em Planaltina e Jardim Ingá (GO), respectivamente, e tiveram o mesmo destino trágico ao caírem em bocas de lobo com falhas de segurança.
João saía da escola acompanhado da mãe, na Quadra 6 da Vila Buritis, em Planaltina, quando foi levado pela água. Foram mais de 15 horas de buscas até os bombeiros o encontrarem a aproximadamente 30 metros da boca de lobo em que caiu, no Córrego Atoleiro.
Goiás
Dois dias depois, Pedro Henrique encararia uma situação parecida. A criança, que vigiava carros no Jardim Ingá, em Luziânia (GO), voltava para casa quando perdeu o equilíbrio e foi jogada pela enxurrada para dentro de bueiro sem cobertura, no Parque Estrela Dalva 9. Ele foi encontrado já sem vida em um córrego dentro de uma chácara.
Versão oficial
As bocas de lobo com mais de meio metro de abertura foram executadas pela Administração Regional de Ceilândia, que informou que “medidas como a ampliação da capacidade de drenagem e a limpeza periódica das bocas de lobo vêm ocorrendo sistematicamente desde 2011”. Ciente do problema com a boca de lobo na QNN 20/22, afirmou que a recuperação deve ser feita até a próxima sexta-feira.
A Novacap prometeu enviar uma equipe técnica “para avaliar a boca de lobo indicada e tentar encontrar uma solução de segurança para os moradores que transitam pelo local”. De junho a setembro, a Novacap fez a Operação Primavera, que prepara a cidade para o período chuvoso. “Esta operação consiste na limpeza da boca de lobo, podas de árvores, recolhimento de folhas secas, galhos e retirada de resíduos sólidos na rede de águas pluviais”, informou a pasta.
Números
8,1 mil bocas de lobo de todo o DF passaram por limpeza, de janeiro a setembro
8 a 10 toneladas de lixo são retiradas destes locais por dia