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Brasília

Aborto ilegal: uma sombria realidade no Distrito Federal

Da compra de remédios pelas redes sociais às clínicas clandestinas, o doloroso caminho de quem decide interromper uma gestação

Lucas Neiva

01/02/2021 6h48

Abortar ilegalmente infelizmente está a um clique de distância de quem procura no Distrito Federal. Anúncios de venda de medicação que induzem o aborto podem ser encontrados facilmente, e sem nenhuma fiscalização, em grupos abertos sobre o tema no Facebook.

Em um grupo, um perfil em nome de Yasmim oferece uma espécie de delivery do Misoprostol, nome genérico do Cytotec. O preço dos comprimidos varia conforme a forma de pagamento, podendo ser feito em dinheiro, cartão de crédito ou por meio do aplicativo picpay, partindo dos R$ 95 aos R$ 130.

Pelo whatsapp, a vendedora prescreve as doses indicadas, que podem variar de 6 a 20 comprimidos conforme a etapa da gestação. A partir da 17ª semana, são indicadas injeções salinas que saem por R$ 1650 no dinheiro ou R$ 1.750 no cartão. Toda a mercadoria sai de Brasília e é entregue a todos os estados brasileiros via Sedex, sem direito a estorno. Esses foram os termos da clínica de aborto clandestino contactada pela reportagem.

Anualmente, o Ministério da Saúde estima que sejam realizados cerca de um milhão de abortos induzidos clandestinos no Brasil. A cada ano, de acordo ainda com o ministério, cerca de 250 mil mulheres são hospitalizadas por ano em função de complicações resultantes desses procedimentos. Cinco mil dessas internações anuais são consideradas como de alta gravidade. Cerca de 2 mil mulheres morreram entre 2008 e 2018 lidando com complicações.

Em Brasília, a Polícia Civil do Distrito Federal registrou 14 ocorrências de abortos clandestinos ao longo do ano de 2020. As ocorrências incluem tanto abortos consentidos quanto provocados pelo parceiro durante tentativas de feminicídio. Paralelamente, o Programa de Interrupção Gestacional (PIGL) da Secretaria de Saúde do Distrito Federal foi procurado por 10 pacientes vítimas de abuso sexual, com três delas optando por terminar a gravidez.

Ao todo, 69 países no mundo já reconhecem o direito à interrupção voluntária da gravidez. Os dois últimos países a aderir foram a Argentina e, ainda em 2021, a Coreia do Sul. No Brasil, por outro lado, ainda não há previsão de aprovação de leis que permitam o abortamento voluntário. Mas mesmo sem uma legislação nesse sentido, o aborto sempre foi uma realidade no país e no Distrito Federal.

Os perigos da clandestinidade

Na via clandestina, a aposentada Rafaela (nome fictício) acompanhou uma vizinha durante o procedimento, e confirma as condições pouco sanitárias relatadas por Álvaro “Era uma clínica muito rudimentar. O médico era licenciado e tinha sua própria clínica ginecológica, mas fazia os procedimentos ilegalmente em um consultório separado. As ferramentas eram muito rudimentares, o ambiente não era próprio para isso, não dava para chamar aquilo de cirurgia. Foi tudo muito horrível, por sorte ela não chegou a ter uma infecção. Depois disso nunca mais falamos sobre aquilo, virou um assunto proibido entre nós”.

De acordo com Adriana Romana, Delegada-Chefe da 2ª Delegacia de Atendimento Especial à Mulher, são poucas as ocorrências de abortos clandestinos ocorridos em clínicas no DF. A maioria dos casos são feitos em casa, sem qualquer supervisão profissional. “São procedimentos bem arriscados, que podem resultar em infecções graves e a mulher vir a óbito. Já atuei em casos em que a mulher ficou hospitalizada por vários dias por conta desses procedimentos”, esclarece.

Medicamentos impróprios e sondas são os meios mais comuns nos procedimentos clandestinos. “Teve um caso que eu trabalhei aqui na Ceilândia há muitos anos em que a própria gestante provocou o aborto, e me chamou muito a atenção porque o feto já tinha sete meses. Ela tomou medicamento e a criança já nasceu morta”, relembra a delegada.

Alguns abortos clandestinos sequer chegam a ser voluntários. É o que relata a profissional de saúde Júlia (nome fictício), que passou por um aborto em 2013, quando tinha 18 anos de idade. “Eu estava grávida do até então meu namorado, mas só fui descobrir aos 3 meses, pois tive sintomas muitos básicos, apenas fome e enjôo. Quando a avó dele descobriu, ela disse que ia preparar um chá para aliviar os sintomas. Ela me deu esse chá por três dias, e então eu tive um sangramento muito forte e perdi o bebê”.

A experiência marcou um capítulo doloroso na vida de Júlia. “Eu estava com muita dor. Eu estava me sentindo muito mal porque me sentia culpada. Eu achei que era algo comigo, que meu corpo não daria conta de segurar o bebê. Mas a culpa não era de fato minha, foi algo induzido. Então eu me senti mal”, conta. A gravidade do que ela havia sofrido só foi percebida anos depois, quando passava por psicoterapia.

Vítimas de violência

Qualquer vítima de violência sexual independentemente da idade pode procurar por assistência pelo PIGL em postos da Secretaria de Saúde de qualquer região do Distrito Federal, onde cada região possui um programa próprio de assistência usualmente com nome de algum tipo de flor. As pacientes, que podem incluir homens transsexuais, são então encaminhadas ao Hospital Materno Infantil (Hmib), onde pode ser realizado o procedimento de abortamento.

O ginecologista Álvaro Colusso aponta para a importância da vítima de não se calar diante da violência sexual. “No momento em que uma pessoa foi vítima e que suspeita que possa resultar em uma gestação, já existem centros de atendimento em todos os serviços de ginecologia do DF onde essa vítima vai receber o atendimento médico, psicológico e assistência social adequados apropriados. (…) Mas mesmo aquela pessoa que não conseguiu chegar ou procurar a tempo, também se recomenda essa atitude, que busque a ajuda do governo”, declara.

O aborto no DF

No Brasil, a lei prevê duas situações em que o aborto é permitido: quando a gravidez representa um risco à saúde física da mãe e a sua interrupção se mostra necessária para salvar sua vida ou quando a gravidez é resultante de violência ou abuso sexual. No Distrito Federal, esses procedimentos são feitos no Hmib por médicos da Secretaria de Saúde vinculados ao Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL).

O médico Álvaro Luiz Colusso participou do programa entre os anos de 2012 e 2016. “Ao longo desses quatro anos, eu e meus colegas, que na época éramos três, atendemos mais de cem pessoas. Elas não possuíam perfil específico: eram de diferentes classes sociais, diferentes cores, diferentes contextos”, relata. As pacientes eram vítimas de violência em busca de ajuda médica, mas que não necessariamente procuravam o aborto: o programa ainda abre a possibilidade para caso a mãe decida seguir com a gravidez e depois escolher se prefere manter a criança ou levar para adoção.

Os procedimentos, de acordo com Álvaro, são feitos sempre da forma menos agressiva possível, com métodos que variam de acordo com a situação da gravidez. “Conforme o número de semanas daquela gestação, é necessário fazer um tipo específico de abortamento”, explica. Quanto mais precoce a gestação, mais simples é o procedimento. “Desde o uso de medicações ao uso de curetagem propriamente dita”.

O abortamento feito por meio do PIGL procura não oferecer riscos à saúde da mulher, e também não atingir sua saúde reprodutiva. O mesmo não ocorre quando feito por via clandestina.

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